Opinião

SIS: perguntas sem resposta

SIS: perguntas sem resposta

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Se o episódio do computador do assessor do Ministro das Infraestruturas parecia apenas rocambolesco, já a intervenção do SIS assume uma gravidade que não pode passar em claro

O que sabemos até agora é que perante um assessor que demitido das suas funções se apropriou de um computador de serviço que conteria informação classificada, alguém achou por bem fazer intervir nada mais nada menos que o Serviço de Informações de Segurança.

Sucede que num caso como o descrito esta atuação do SIS é manifestamente ilegal.

Qualquer serviço público, seja ele qual for, não pode atuar numa base de discricionariedade. Tem de atuar segundo um princípio de legalidade, isto é, as suas atuações têm de ter um respaldo na lei e ser adequadas à prossecução das suas atribuições e competências legais. Se assim é relativamente a um qualquer serviço público, o cumprimento deste princípio tem de ser particularmente rigoroso quando se trate de uma força ou serviço de segurança, e mais ainda quando o serviço de segurança em causa assume competências numa área de soberania especialmente sensível como é a dos serviços de informações.

Nos termos da Lei-Quadro dos Serviços de Informações da República (SIRP), o Serviço de Informações de Segurança (SIS) é o organismo incumbido da produção de informações que contribuam para a salvaguarda da segurança interna e a prevenção da sabotagem, do terrorismo, da espionagem e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito constitucionalmente estabelecido.

Mesmo que se admita como certo que o computador em causa contém informação classificada, já é intrigante pensar que um assessor de um Ministro das Infraestruturas possa estar na posse de informações relacionadas com atos de sabotagem, de terrorismo, de espionagem ou com ameaças à segurança interna capazes de alterar ou destruir o Estado de direito constitucionalmente estabelecido.

Porém, há uma questão antes dessa. A questão é que o SIS é um serviço de “produção de informações”. Não é um serviço competente para intervenções de natureza policial. Se alguém divulga informações de natureza confidencial (mesmo as que estejam na posse do SIS) comete um ilícito criminal, e quem tem competência para o investigar, para recuperar a informação e para promover a responsabilização dos infratores não é o SIS. São as autoridades judiciárias, com a coadjuvação dos órgãos de polícia criminal. Portanto, a competência para recuperar o computador era da Polícia Judiciária, como se veio a comprovar mais tarde. Mas então porque interveio o SIS?

Daqui a segunda questão ainda sem resposta: quem mandou intervir o SIS?

O único membro do Governo com a responsabilidade da tutela do SIRP é o próprio primeiro-ministro. Essa competência não está delegada em nenhum outro membro do Governo e o cargo de secretário-geral do SIRP é equiparado a secretário de Estado. Se o primeiro-ministro não deu nenhuma ordem ao SIS para atuar, quem deu? Foi o SIS que atuou por iniciativa própria, por sugestão (já que por ordem não podia ser) de outro membro do Governo? Essa sugestão foi dada à secretária-geral do SIRP? E a secretária-geral do SIRP mandou o SIS atuar sem se questionar sobre o cabimento legal dessa atuação? E não houve uma alma que alertasse para o facto de não ser permitido a um serviço de informações interpelar um cidadão em casa ou na rua para o fazer devolver um objeto que não lhe pertence, dado que essa operação é inquestionavelmente de natureza policial?

Como se não bastasse o caráter nebuloso desta atuação, o comunicado emitido pelo conselho de fiscalização do SIRP em cima do acontecimento, é a cereja no topo do bolo.

Vem o conselho de fiscalização afirmar que a atuação do SIS não foi uma medida de polícia porque “tudo aponta no sentido de o computador ter sido entregue voluntariamente por quem o detinha, na via pública, portanto, fora do contexto do seu domicílio, e sem recurso a qualquer meio coercivo ou legalmente vedado”. Lê-se e nem se acredita.

O facto de um cidadão ser interpelado na rua por um agente do SIS para lhe entregar um computador não é, em si mesmo, um ato dotado de coercibilidade? Se o cidadão em causa se recusasse a entregar o computador estaríamos perante a piada do Raúl Solnado do prisioneiro que não quis vir? O que faria o agente do SIS se o assessor se tivesse recusado a entregar-lhe o computador? Usaria meios coercivos ilegais?

O problema com que estamos confrontados é, em síntese, o seguinte: o SIS desenvolveu uma atuação manifestamente ilegal e a secretária-geral do SIRP tem o dever de esclarecer a Assembleia da República e o país sobre as circunstâncias dessa atuação, isto é, por que razão a ordenou ou permitiu e por sugestão de quem, dado que a haver alguma ordem ela só poderia ter sido dada pelo primeiro-ministro.

O conselho de fiscalização, eleito pela Assembleia da República para fiscalizar a atuação dos serviços de informações, atuou como é costume, assumindo-se como o primeiro defensor da atuação dos serviços, vestindo sempre a camisola do SIRP em vez de vestir, como lhe compete, a camisola da legalidade.

O conselho de fiscalização pretende tranquilizar-nos, afirmando que o SIS, no mesmo dia em que recebeu o computador procedeu à sua entrega ao CEGER, organismo que tem a seu cargo a segurança eletrónica do Estado e a prevenção da perda ou circulação indevida da informação. Porquê então o SIS, e não a Polícia Judiciária ou a PSP?

O que o conselho de fiscalização nos quer dizer é que o SIS não fez mal nenhum, mas a questão não é essa. A questão é a de saber se o SIS atuou nos termos em que a lei lhe permite atuar ou se extravasou as suas competências.

Por muitas voltas que se tente dar para justificar o injustificável, o facto é que o SIS atuou num caso estranho às suas competências e efetuou uma diligência manifestamente ilegal. Quem tinha de atuar em todo este caso era, desde o início, a Polícia Judiciária, quer para recuperar o computador recorrendo, se necessário, aos meios coercivos proporcionais que a lei lhe permite, quer para promover a eventual responsabilização por qualquer divulgação ilegal de informações classificadas. O SIS nunca devia ter entrado neste triste filme - e é grave que tenha entrado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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