Opinião

Em Portugal, os doentes não têm direitos

Em Portugal, os doentes não têm direitos

Julie Machado

Mestre em Teologia

Todos sabem que os médicos são humanos e que é natural que haja erros. Então que se acabe com a hipocrisia de mentir aos doentes, do classismo dos médicos e dos profissionais de saúde a protegerem-se. Que a jurisprudência em Portugal mude a favor do indivíduo e do doente

Celebrou-se no dia 18 de abril o Dia Europeu dos Direitos do Doente. Antes da minha operação, dia 22 de setembro de 2022, não teria reparado neste assunto. Desde a minha operação, a minha visão sobre a saúde em Portugal tem vindo a mudar drasticamente. Até porque tenho ido todos os dias desde aí a hospitais para fazer fisioterapia, o que quer dizer que passo muito tempo lá.

No parto da minha filha no dia 12 de setembro de 2022, num hospital público, levei anestesia epidural. Entrou uma bactéria hospitalar, MRSA, na agulha e fez infeção no espaço epidural. Depois de uma semana de dores que não lembram a ninguém, descobriram, e fui operada para drenar o abcesso. No dia a seguir à operação, só mexia um dedo do pé e nada mais. Estive algaliada um mês e meio. Tudo abaixo do umbigo deixou de funcionar. Os médicos, até hoje, nunca dão prognósticos, pois na verdade não sabem se e quando a pessoa vai recuperar. Há assuntos que ultrapassam a ciência. Sete meses após a operação, já consigo andar com apoio e estou independente na casa de banho, apesar de que ainda me falta sensibilidade em alguns sítios. Não sabem se a sensibilidade vai voltar ou quando.

Se eu ficasse à espera da ajuda do Estado, os duzentos e setenta euros que comecei só agora a receber por mês, eu não teria conseguido recuperar tão bem nem teria conseguido pagar a cozinheira e a babysitter de que precisei logo que cheguei do hospital. Sim, porque esta filha que nasceu era a minha sexta. Se não se tivesse levantado uma onda de solidariedade e também de donativos entre os meus amigos, eu não teria conseguido ter a enfermeira em minha casa a ajudar nem a fisioterapia diária em casa durante o mês e meio que esperei até ser chamada para o Alcoitão.

O Estado escolheu o sítio: ter fisioterapia no Alcoitão e num hospital público. Mas se eu quiser ir a uma fisioterapeuta especializada na parte pélvica numa clínica privada (e vou, duas vezes por semana), tenho de pagar do meu bolso. O Estado ajuda, mas o Estado escolhe.

E o hospital público onde isto aconteceu não ajuda financeiramente? É a pergunta de muitos amigos que não percebem que se não for litigioso, ninguém paga nada. Eu tive de aprender penosamente: mesmo se for litigioso, ninguém paga nada. Porque é o Estado. Um advogado contra o Estado ou tem uma evidência claríssima de má prática, ou nada pode.

Médicos amigos geralmente concordam que é muito improvável a bactéria ter estado na agulha, que se abre cuidadosamente e está esterilizada. Concordam que foi de uma má desinfeção da pele. Quem me administrou a epidural era uma interna e eu não vi especialista nenhum. No entanto, eu não posso servir de testemunha pois estava de costas voltadas para a porta e o meu marido também não pode testemunhar, pois pediram-lhe que saísse.

Perguntei à enfermeira parteira se ela podia testemunhar que não havia especialista na sala, mas assegurou que havia. Estava à porta, por isso não o vi. - Não estão nunca internos a trabalhar sem a presença de especialistas neste hospital público?, perguntei eu à enfermeira. - Nunca, assegurou-me ela, nunca. Jamais alguma interna trabalharia sozinha neste hospital. Jamais estariam menos anestesistas de banco do que deveriam estar neste hospital. Perguntei porque, segundo as normas vigentes na altura, seria obrigatório ter estado um médico especialista a supervisionar o procedimento.

Qualquer profissional de saúde que trabalhe num hospital público pode quanto muito duvidar desta informação, passada com tanta veemência e segurança. Especialmente porque o meu parto aconteceu no verão em que morreu uma grávida em pré-eclâmpsia a ser transportada do Hospital Santa Maria para um hospital periférico por alegada falta de vagas no serviço de neonatologia daquele hospital. A ministra da Saúde demitiu-se após este incidente. Só se via nas notícias que faltavam obstetras, que muitas maternidades fechavam. Este hospital público onde tive o meu parto informou os noticiários de que não fechava. Era dos poucos que não fecharam, ainda que com serviços limitados.

Uma obstetra deste hospital desaconselhou-me a processá-lo. Disse-me que ia gastar tempo e dinheiro com tal, pois havia imensos, imensos processos contra esta maternidade e eram todos arquivados. Tentavam alguns meter recurso, mas acabavam por desistir. O hospital ganhava sempre. O Estado ganhava sempre.

Sou luso-americana e uma amiga dos Estados Unidos disse-me que ficou doente a ouvir que eu não conseguia indemnização. Lá, o indivíduo ganha facilmente e quase sempre. A jurisprudência em Portugal é ao contrário: é o salve-se quem puder. A enfermeira parteira no meu caso defendeu a instituição e o renome da instituição com unhas e dentes, em prejuízo de uma mulher numa cadeira de rodas, com uma bebé recém-nascida, que chorava diante dela a perguntar se não testemunhava. Claro que não, não se passou nada de mal feito neste hospital. Nem com médicos sobrecarregados e a fazer bancos a mais, nem com internos a trabalhar sozinhos, nem com condições de assépsia garantidas para executar tal procedimento sensível.

Pior do que isso: não só os doentes não têm hipóteses nenhumas de receber indemnizações, mesmo quando seria justo isso acontecer, como nem têm o direito de saber o que fizeram ao seu corpo. Como vou de ambulância para o hospital fazer fisioterapia, por vezes outros doentes na ambulância perguntam o que me aconteceu e partilham as suas histórias.

Uma senhora disse que foi atropelada por um carro com oito anos e lhe puseram uma placa no joelho. Aos sessenta anos, a placa partiu-se e fizeram operação para substituir a placa. Algum tempo depois, teve de fazer uma segunda operação, porque lhe disseram que na primeira não conseguiram tirar a placa original e puseram uma por cima. Por isso, na segunda operação tiraram as duas e substuituíram por outra. Ela teve muito tempo de cadeira de rodas (como eu), depois de canadianas e agora estava bem. Ia ao hospital por outro assunto: a diabetes. - Que horror, disse eu, e eles admitiram erro médico? - Qual admitir!, disse ela. Ainda por cima teve de ver o médico depois da operação, que era porta a porta com o novo médico, e ele tinha-lhe dito: “Você deu-me muito trabalho!” Isto porque a primeira operação demorou sete horas e ela teve de levar duas transfusões de sangue.

Quem já foi doente num hospital público sabe que é bastante possível “ouvir bocas” e ser mal tratado por médicos e profissionais de saúde. Mesmo que se faça reclamação, nada os afeta a eles nem à sua carreira. Outra diferença dos Estados Unidos.

Não é que não se façam erros médicos nos hospitais privados. Todos sabem que os médicos são humanos e que é natural que haja erros. Então que se acabe com a hipocrisia de mentir aos doentes, do classismo dos médicos e dos profissionais de saúde a protegerem-se. Que a jurisprudência em Portugal mude a favor do indivíduo e do doente.

Os sistemas de saúde que dão mais autonomia aos utentes não são muito populares em Portugal. Neste contexto, o que tem feito a atual solução governativa? Que em saúde, não muito, para além de tentar aprovar à força uma lei para a eutanásia, apenas porque a atual conjetura parlamentar lhe é favorável.

Os portugueses gostam muito de que o Estado ajude e que faça tudo. Votam nesse sentido também. Mas esquecem-se de que se o Estado se torna tão enorme e tão paternalista, que ajuda “todos”, quem existe para nos defender do Estado? E se for o próprio Estado o agressor?

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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