O assédio é um jogo de poder
Vivemos numa sociedade com tanto sexismo estrutural, que a lei do assédio parece ser: o abusador é inocente até prova do contrário e a vítima estava a pedi-las até prova, com testemunhas, do contrário
Todas as mulheres que conheço já ouviram piropos na rua, especialmente na sua adolescência. Atenção, nem todas as vítimas são mulheres, embora na sua grande maioria, mas a enormíssima maioria dos assediadores, seja contra que género for, são homens.
O que todos os assédios têm em comum são jogos de poder e a total anulação de consentimento. Neste texto, com o meu tom provocador, tentarei expor algumas faces deste problema estrutural complexo.
“Well before a young woman comes of age, she is made aware that her body is a commodity, and that commodity is not wholly hers to command” Penny, pág. 9.
Em plena Rua Passos Manuel, no Porto, ao meu ouvido, eu a descer, ele a subir: “Fodia-te toda”.Depois temos casos mais extremos, que vão até: “Na estação de comboios, um homem dos seus 50 anos, eu com 19, estava a masturbar-se enquanto dizia tudo o que me queria fazer.” – testemunho anónimo que recebi.
Nestes casos, as vítimas entram num loop de: "Devia ter respondido”, “devia ter dito antes isto”, “devia ter trazido um casaco menos decotado ou uma saia menos curta”. Mulheres de burca são violadas. A culpa da violação ou do assédio é sempre do assediador/violador. Quando eu fui apalpada, com grande aperto no rabo, por um gajo a passar por mim com um amigo em plena avenida da baixa, eu estava de hoody, carapuço, a caminhar tranquila. Eles eram dois, eu era uma.
Ora, agora, como provocação para chamar à razão, pergunto:
Que levante o braço a mulher que após de ouvir o piropo “comia-te toda”, teve vontade de fazer sexo com o homem que proferiu tais palavras, ao seu ouvido, no metro.
Que rodopie a mulher que levou para o seu quarto de hotel o poeta de rua que lhe disse “nem sabes o que te fazia”.
Assim, se o piropo não engata pessoas, é, meramente, um jogo de poder: ” eu tenho o poder de comentar o teu corpo, porque o teu corpo é público. Eu tenho o poder de te assediar porque sou homem e o teu corpo está aqui à minha disposição. Desculpa se foi desconfortável para ti, não era a minha intenção, devias vê-lo como um elogio”.
Um piropo, um apalpão, um olhar fixado alheio, nunca são elogios.
Mesmo que a tua intenção não seja ofender, tal não te garante que a tua interação não tenha sido assédio. A intenção do assediador não tem grande valor quando a consequência para a vítima é a mesma.
– Mas agora nem se pode dizer nada às mulheres!
Bem, se as estás a incomodar ao invés de respeitar o seu espaço, não estás a ter uma boa abordagem. Se comentas logo algo físico de forma porca, fora de um contexto consentido de sexting ou dirty talk, não as estás a respeitar. Neste contexto, Penny cita Franklin Leonard, dizendo “when you’re accustomed to privilege, equality feels like oppression".
Por outro lado, podemos argumentar que um “comia-te toda, agora” possa ser potenciador de líbido num contexto de relação em que há espaço consentido para esse tipo de linguagem. Acredito que facilmente se compreenderá que um estranho na rua a mandar um piropo e um namorado/uma namorada a enviar uma mensagem são dinâmicas totalmente diferentes. O contexto diz tudo. Equiparar os dois é quase como considerar normal ir à dentista tratar uma entorse de pé.
“Authority becomes abuse when it cannot be challenged without immense personal cost.” Penny, pág. 244.
Recentemente, vimos acusações de assédio contra Boaventura Sousa Santos e Sena Martins; Anália Torres afirmou numa entrevista ao Expresso “As pessoas ainda acham que o assédio é uma fatalidade que acontece às mulheres e que elas têm de se conformar”; e foi publicado o excelente manifesto “Todas Sabemos”.
Sobre as mulheres que se chegam à frente e fazem queixa, as pessoas subscritoras afirmam:
“Não é de ânimo leve que as mulheres se sujeitam ao escrutínio e ao questionamento público.” Porque as mulheres que ousam, perante a sociedade, perante a hierarquia de poder, fazer queixa, “sabem de antemão o que as espera: juízos de valor, humilhação, deturpação, ridicularização e potencial retraumatização.”
Dito isto, a Academia é só um dos locais de trabalho em que existe assédio e abuso de poder. Recebi testemunhos de mulheres que eram “convidadas” a desapertar mais um botão da blusa quando vinha tal cliente. A terem de tolerar piropos, porque vinham do chefe, a serem chamadas à atenção porque responderam “de forma arrogante” face a um piropo. Acho incrível como um mero “não” faz de uma mulher arrogante. A mulher que ainda é vista como sendo o adorno da sociedade, que é boa menina quando é bem mandada, que não questiona, que aceita, a cuidadora eterna da Humanidade. Se não for, é egoísta.
Sobre a mulher tida como automática cuidadora, Anahit Behrooz, no livro BFFs, onde explora o poder transformador da amizade entre mulheres, vai mais longe dizendo que convém ao Estado que a sociedade se continue a organizar em casais heteronormativos, com papéis de género conservadores e sexistas, para que assim se garanta que o cuidado da família, dos mais velhos, dos filhos, recaia nas mulheres da família, libertando largamente o Estado dessa responsabilidade. É uma afirmação forte e muito interessante, com um encadeamento de raciocínio posterior sobre a envolvência da dimensão patriarcal e capitalista na centralização da intimidade emocional feminina na família.
Nestas situações de assédio, usa-se muito este argumento. Ora, o seu uso pressupõe que a única forma de um homem ser sensível e empático ao ponto de perceber que o assédio é errado, é considerar que esse assédio poderia estar a ser feito a uma mulher relacionada a si. Ou seja, a uma mulher que de alguma forma lhe é propriedade: “a minha mãe”, “a minha irmã.”
Não é o argumento ideal, mas, como as coisas estão, no limite, pelo menos, que perceba dessa forma o quão errado é. No entanto, acho relevante refletirmos que até na empatia em casos de assédio pode haver hierarquia de poder e propriedade patriarcal.
Vivemos numa sociedade com tanto sexismo estrutural, que a lei do assédio parece ser: o abusador é inocente até prova do contrário e a vítima estava a pedi-las até prova com testemunhas do contrário.
Não podemos continuar com uma sociedade que culpa uma mulher violada por causa de estar alcoolizada, mas dá uma abébia ao homem violador porque estava alcoolizado e não sabia o que estava a fazer, estava fora de si. Como é que a mesma circunstância passa de culpa a desculpa mediante o género?
Quando as minorias de poder de juntam, tornam-se fortes, tornam-se numa força coletiva capaz de derrubar estruturas de poder. E a revolução já começou.
A título pessoal, podemos intervir face ao assédio, como referido acima; podemos não desconfiar logo à partida da vítima que deu a cara para fazer queixa de abuso; devemos chamar à atenção do nosso amigo que teve um comportamento sexista; se formos nós as vítimas, que façamos queixa e procuremos associações, entidades, representatividade, nesse aspeto; e podemos apoiar quem foi vítima, mas está sem forças para fazer frente ao abusador.
É através dessa união que nascem as ligações coletivas que fazem a revolução: seja com o manifesto escrito Todas Sabemos; com a criação de um gabinete para receber denúncias de assédio, como fez a Associação Académica de Coimbra; ou com grandes manifestações nas ruas. Além disso, não esquecer que, para garantir a democracia, é imprescindível votar em quem defende as minorias de poder. Quem tem poder está seguro, não se preocupem.
Precisamos urgentemente de passar de uma estrutura social com competição nociva, coerção e dominância como pilares, para, como afirma Laurie Penny, um modo de vida com base no consentimento, comunidade e prazer.
Abril é Feminista.
Referências bibliográficas
Se és homem ou rapaz e foste vítima de abuso, não estás sozinho. Contacta a associação Quebrar o Silêncio.
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