Passam hoje 417 dias desde aquele funesto 24 de Fevereiro, em que Putin resolveu invadir a Ucrânia. Dados apurados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos apontavam, há dois meses, quando se cumpria um ano da data que mudou a política internacional, para a morte de 8.006 civis e 13.287 feridos.
Com este acto, com os posicionamentos estratégicos daí decorrentes, com o regresso da sobreposição da geopolítica à geoeconomia, com a crise mal disfarçada no seio da União Europeia, a política internacional mudou e ganhou importância. E mudou com perspectivas muito incertas durante muitos anos. Já a política nacional não parece ter acompanhado essa mudança. E digo isso, porque a tendência de deterioração da autoridade do Estado, a falência dos serviços públicos, o descrédito da classe política, o congelamento da economia, o agravamento da carga fiscal, a perda de rendimentos reais dos portugueses e a ausência de perspectivas de melhor futuro das famílias portuguesas, segue um caminho iniciado em 2015 com a geringonça.
E se a política nacional, lato sensu, não parece ter mudado, a sua abordagem, stricto sensu, quer por parte dos jornalistas, quer por parte do incumbente PS, também não. Com uma excepção. Luís Montenegro, na passada 6ª feira, disse com muita clareza e maior coragem, que derrogava qualquer possibilidade de acordo com políticos e políticas racistas e xenófobas, dando a resposta que faltava à pergunta que o perseguia: o PPD/PSD não partilha, nos princípios e nos meios, chão comum com o Chega. Respondida esta questão, falta agora aos portugueses a resposta a uma outra questão, que os jornalistas têm a obrigação deontológica de fazer, ad nauseaum, ao dr. Costa. E devem fazê-la até que o dr. Costa lhes responda ou se irrite, e se se irritar perguntar outra vez: o PS admite, em cenário de eleições, uma coligação governamental ou um acordo de incidência parlamentar com o PCP e o Bloco de Esquerda?
É porque esta pergunta importa. E a resposta importa ainda mais. Importa por razões ideológicas e programáticas, claro, como amiúde aqui tenho tratado, porque importa saber de que lado está o PS em matéria de liberdades e de prosperidade económica. Mas, hoje, importa também, sobremaneira, por razões de política externa, mais vitais do que em tempo de paz, tão civilizacionais como sempre.
Com o "derrubamento do muro", deitando por terra o que em Portugal se usava designar de arco da governabilidade, de que o dr. Costa tanto se gabou então e tanto se lambuzou depois, o PS de Mário Soares, do 25 de Novembro, da adesão à União Europeia, da filiação à Aliança Atlântica, mudou. Ou não. Mas havendo dúvidas, e essas dúvidas existem, cabe ao PS fazer esse esclarecimento. O PS é um partido que derroga alianças com partidos da extrema-esquerda e da esquerda populista ou partilha com esses partidos um chão comum?
E escusam de responder que essa questão não se coloca agora. Estamos à beira de eleições europeias, que têm politicamente um significado maior do que aquele que o eleitorado normalmente lhes atribui, e paira sobre o país, com epicentro em Belém, a possibilidade real de eleições legislativas antecipadas. A conjugação destas duas circunstâncias obriga a que o PS se defina.
Dou uma ajuda.
O PCP vê com “particular gravidade” o “posicionamento de submissão” do Governo português perante a “escalada armamentista” na Ucrânia, e defende que “os Estados Unidos, NATO e União Europeia cessem de instigar e alimentar a guerra”. Ou seja, para o PCP são a Ucrânia - que, teimosamente, insiste na sua defesa -, e os seus aliados ocidentais - que, incompreensivelmente, a apoiam -, os responsáveis pela escalada armamentista e pela instigação da guerra.
Nesta sanha anti-Estados Unidos, o PCP não está sozinho. Também o Bloco de Esquerda considera que o "hegemonismo [dos Estados Unidos] viola os parcos princípios de Direito internacional existentes e bloqueia o funcionamento ou a autoridade de instituições internacionais não financeiras, a começar pela ONU - uma organização já de si bem pouco democrática."
Também no que concerne à NATO, as posições destes partidos são antigas, coerentes e conhecidas. O PCP, mais honesto e transparente do que o Bloco, considera que "no plano político-militar, a NATO, organização militarista e ofensiva, avulta como um sério perigo para a luta dos povos e da paz mundial." E que "a dissolução da NATO é objectivo crucial para a afirmação da soberania nacional e para a paz mundial, com o qual o processo de desvinculação do País das suas estruturas deve estar articulado, no quadro do inalienável direito de Portugal decidir da sua saída."
Também nesta sanha anti-NATO, o PCP não está sozinho. O Bloco, com menos explicações, mas igual determinação defende "a saída de Portugal da NATO".
Mas não é só o "Inverno" na Ucrânia que obriga o PS a esclarecer a sua posição, a Primavera em Portugal também. A pouco mais de uma semana daquele dia, inteiro e limpo, que começou a 25 de Abril de 1974 e que se completou a 25 de Novembro de 1975, vale também a pena, e vem bem a propósito, relembrar o que é que o PCP pensa da adesão de Portugal à União Europeia: "a adesão de Portugal à CEE, contra a qual o PCP justamente lutou e cujas implicações negativas previu, criou acrescidos obstáculos a uma política democrática, integrou-se no processo de destruição de conquistas de Abril e inseriu o País numa dinâmica gravemente lesiva do interesse nacional."
E por falar em conquistas de Abril, Lula da Silva vem no dia 25 a Portugal para gáudio das esquerdas unidas. Em Pequim, esta semana, disse que "os Estados Unidos devem parar de encorajar a guerra e começar a falar de paz, a União Europeia deve começar a falar de paz". Esta posição, com uma Ucrânia violada e invadida por um poder Russo criminoso, almofadado num sino-cinismo, só pode ter uma de duas explicações: ou Lula é um pacifista ignorante ou um inimigo da Liberdade hipócrita. E não consta que Lula seja ignorante.
Donde, tratando-se de uma declaração que visa também Portugal, enquanto membro pleno na União Europeia, o que é que as três pessoas que ocupam os mais altos cargos da Nação pensam disto? Eu, se este país conservasse um módico de clareza, coragem e decência, não esperaria menos que uma correcção fraterna - pública! - de Marcelo, Santos Silva e Costa a Lula. Em nome dos ideais de Abril, se para eles forem também os de Liberdade. Mas acho mais inteligente ir ali buscar uma cadeira para que a espera não seja tão penosa.
Sobre tudo isto há ainda uma coisa a acrescentar. Têm sido, e bem adequadamente, invocadas as parcerias europeias do Chega - um barril de reaccionários, iliberais e racistas - mas pouco se fala das parcerias europeias e internacionais do PCP e do BE, que se sentam na mesma bancada: o The Left, um coio de revolucionários, iliberais e anti-personalistas, que querem a "Europa livre das políticas antidemocráticas e neoliberais da Organização Mundial do Comércio, do FMI, e que recusam a NATO e bases militares estrangeiras". Quiçá, para aprofundar as ligações à China, à Venezuela ou à Coreia do Norte, esses faróis da luta de classes.
Perante tudo isto, e quando a guerra da Ucrânia, em território europeu, se tornou o Rubicão do presente, não há como fugir à pergunta: dr. Costa, o PS admite, em cenário de eleições, uma coligação governamental ou um acordo de incidência parlamentar com o PCP e o Bloco de Esquerda?
Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia
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