A terra dos eleitos e as vidas insepultáveis
A “humanidade em trânsito” constituída pelos migrantes em fuga é uma expressão maior dessas vidas quase “insepultáveis”, desta desumanização da morte com que a Europa tem convivido de modo tão cínico
A “humanidade em trânsito” constituída pelos migrantes em fuga é uma expressão maior dessas vidas quase “insepultáveis”, desta desumanização da morte com que a Europa tem convivido de modo tão cínico
Morreram na semana passada, no Mediterrâneo, mais de sessenta pessoas. Elas somam-se à conta das mais de 26 mil vidas que, nos últimos dez anos, terminaram nessa travessia marítima a caminho da Europa. Vidas que, para o poder que organiza o mundo, parecem contar muito menos que outras vidas. “Vítimas sem luto”, pessoas que estão “antes dos direitos, não sendo neles reconhecíveis”, para usar as palavras do filósofo Hugo Monteiro, para quem o Mediterrâneo é, ao mesmo tempo, um enorme jazigo e menos que um cemitério, porque ali as vidas nem se choram nem se reconhecem, não têm nome próprio, são engolidas e não lembradas.
A “humanidade em trânsito” constituída pelos migrantes em fuga é uma expressão maior dessas vidas quase “insepultáveis”, desta desumanização da morte com que a Europa tem convivido de modo tão cínico. Destas mortes pelas quais a Europa é também responsável, quando não cria rotas legais e seguras de migração, quando limita as operações de salvamento, quando criminaliza as organizações não governamentais que se dedicam ao resgate das embarcações e de quem nelas fica à deriva, quando externaliza para estados como a Turquia a retenção de refugiados. Quando se torna o oposto de um espaço de prometida abundância e direitos. Esta Europa, em que vivemos e de que fazemos parte, para a qual existem vidas que não valem o mesmo. Vidas a quem é negada essa elementar dignidade do luto, como tem descrito Judith Butler, vidas expostas de forma tão radicalmente desigual à agressão, à violência, à morte - ou seja, à mais funda precariedade existencial.
Uma “vida justa”. Foi este o mote da manifestação que, convocada sobretudo a partir dos bairros da periferia de Lisboa, juntou no sábado passado alguns milhares de pessoas, obrigadas no seu dia-a-dia, como dizia o manifesto do movimento, a “escolher entre aquecer as suas casas ou comer”.
Uma “vida boa para todas as pessoas sem exceção”: eis a expressão que, há dias, na apresentação da moção que encabeça, Mariana Mortágua usou para nomear essa aspiração tão sensata quanto inusitadamente radical a uma casa confortável, trabalho decente, tempo, bem-estar individual e coletivo, liberdade e respeito.
Nos dois casos, um alerta como uma prece. Todas as vidas contam. E não nos basta a vida em abstrato. Temos direito a ambicionar para todas as pessoas uma vida que seja muito mais que um lugar vazio de direitos.
Uma vida que vale a pena ser vivida, uma vida justa, uma vida boa, uma vida digna de ser chorada. Parece elementar, mas subitamente percebemos que o óbvio se torna tristemente disruptivo, quando há tantas vidas tratadas como se fossem exteriores à própria humanidade. Nomeadamente por aqueles que, em cima de um regime de desigualdades e de privilégios, gozam sozinhos das delícias da boa vida e riscam no chão as fronteiras internas e externas da injustiça, essas fronteiras que engolem, que ferem e fervem - mas que hão de ser derrubadas.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt