Opinião

China, o abraço da serpente

A Rússia invade, ataca, com a ferocidade de um tigre, toda a gente na Europa fala dela, teme a sua ação imediata. Mas a China não é menos perigosa, menos fatal. A China sabe usar o abraço lento da serpente, o tempo longo da sua história, para atacar as suas vítimas sem que estas sintam a aproximação do fim. O seu objetivo, a prazo, será o domínio do mundo, pois, nas velhas palavras de Confúcio, tal como não há dois sóis no céu, não pode haver dois imperadores na Terra

Noreena Hertz publicou um livro com o título “O Tigre e a Serpente”. A obra transformou-se num clássico do pensamento estratégico e assenta num princípio muito simples: quem decide não se deve focar apenas no que é mais evidente, mais óbvio e se destaca, mas deve sim saber ver o subtil, o encoberto, que se encontra disfarçado no contexto, na paisagem. Isto é, não ver apenas o tigre que se destaca na selva, mas também encontrar a serpente que se encontra disfarçada na sua folhagem.

Dito de outra forma, atualmente a Rússia invade, ataca, com a ferocidade de um tigre, toda a gente na Europa fala dela, teme a sua ação imediata. Mas a China não é menos perigosa, menos fatal. A China sabe usar o abraço lento da serpente, o tempo longo da sua história, para atacar as suas vítimas sem que estas sintam a aproximação do fim. A chama que a alimenta é o ressentimento de um século de humilhação, induzido pelo Ocidente, depois da famosa guerra do ópio que culminou, em meados do século XIX, no cerco ocidental a Pequim. E não duvidemos, o seu objetivo, a prazo, será o domínio do mundo, pois, nas velhas palavras de Confúcio, tal como não há dois sóis no céu, não pode haver dois imperadores na Terra.

Ou seja, o verdadeiro e mais perigoso vírus chinês não é o da covid-19, mas sim o vírus da expansão em mancha e de forma aparentemente benigna do poder chinês, pelo domínio do mundo, e de que muitos europeus parecem ainda pouco conscientes.

Com efeito, a China usa o seu poder de persuasão, a abordagem pacífica dos negócios, sem olhar a ideologias ou estados de alma. Usa a cenoura do dinheiro fácil, o engodo do investimento, junto, sobretudo, de países fortemente endividados, desse modo garantindo território e poder. Compra ativos empresariais, com alto valor acrescentado, terras férteis em África ou na América Latina, infraestruturas estratégicas críticas, como portos, sistemas de transporte, de abastecimento, energia ou de fornecimento de serviços gerais, bem como ainda através da entrada em áreas de grande valor em cash flow, como a saúde, as seguradoras ou os bancos.

Usa ainda a sedução, junto das instituições da sociedade civil, celebrando parcerias com universidades e centros de investigação, contratando grandes escritórios de advogados e consultoras especializadas em lóbi. Ou, por fim, mas não menos importante, constitui rotas logísticas de duplo uso para as suas diversas redes, acentuando a predominância geoeconomia global.

Retomando a imagem do reino da selva, ao contrário da grande frontalidade e ferocidade do tigre, a China usa a estratégia da dissimulação aparentemente suave da serpente. A China sabe esperar e parecer desinteressada. Sabe dizer que não quer conquistar, dominar, mas apenas ajudar o crescimento do comércio mundial. Diz que só quer a paz e a harmonia no mundo, mas fortalece as suas forças armadas e manda os seus polícias fiscalizar e deter os seus cidadãos no estrangeiro. Afirma querer a felicidade dos povos, mas proíbe a dissidência e as liberdades, não só no seu território, como em todo o lugar onde exista um chinês, seja em Taiwan, Hong-Kong ou Macau. Diz-se neutra nas relações internacionais, mas tem vindo a estender a sua influência na região do Indo-Pacífico, promovendo, ao mesmo tempo, uma convergência estratégica com a Rússia, no que respeita à atual guerra na Europa.

Mais, a evidência de que a China, enquanto grande potência, constitui uma verdadeira ameaça para a estabilidade e paz no mundo, encontramo-la em recentes declarações de responsáveis militares americanos, sobre a sua muito provável confrontação bélica com a atual potência hegemónica, os Estados Unidos da América, no que Graham Allison, de Harvard, designou recentemente como a Armadilha de Tucídides.

É por tudo isso que a Europa, por muito determinante que seja, e de facto é, o atual momento de conflito aberto com a Rússia, não pode continuar distraída, persistindo em ver a China apenas como a fábrica das suas commodities baratas e destino das suas marcas de luxo ou dos seus bens intermédios de natureza sofisticada.

Para a Europa, a China, mais do que um velho parceiro de negócios, deve ser vista como um competidor ou rival estratégico, uma verdadeira ameaça aos seus interesses permanentes, ao seu modo de vida, assente nos valores da liberdade e da responsabilidade individual, da defesa da dignidade humana e do princípio do Estado de Direito.

Nessa competição, o risco e a ameaça aumentam, se pensarmos que os pacifistas úteis, atuais apaziguadores do tigre, que facilmente deixam que a Europa seja devorada por este, como infelizmente já acontece em território ucraniano, também acharão bem que, amanhã, a Europa seja engolida pela serpente, o milenar Reino do Meio. A nação que é, afinal, uma civilização. Mas mais grave, levando a que, nesta circunstância, se concretize o clássico ensinamento de Sun Tzu: a excelência suprema consiste em vencer o inimigo sem ser preciso lutar.

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