Em Moscovo, Putin assinalou o primeiro ano do inicio da “operação especial” na Ucrânia com um longo discurso de acusações ao ocidente. Poucas horas depois, em Varsóvia, Biden imolou os seus antecessores Kennedy e Reagan quando, frente ao muro de Berlim, respetivamente em 1963 e 1987, assumiram a defesa dos valores ocidentais contra o comunismo soviético. Salvaguardando distâncias, o dia de hoje pareceu vindo do tempo da guerra fria.
O longo discurso de Putin suscita-me uma consideração prévia. O facto de ter sido transmitido no mundo ocidental na integra e em direto, logo, sem ser editado, confirma que, aqui, a liberdade de expressão é levada a sério. Sobre a forma do discurso, registe-se o aparato, com uma sala repleta das principais figuras do estado, altas patentes militares e o líder da igreja ortodoxa. A encenação serviu, sobretudo, para procurar convencer o mundo de que a nação russa está unida no apoio a Vladimir Putin. Sobre este, tinha expetativa para perceber qual o seu estado de ânimo. Afinal, durante este ano correram rumores desencontrados de que estaria doente ou perturbado. As duas horas de discurso não o confirmaram. Esteve assertivo e não muito diferente de ocasiões semelhantes, pelo menos aparentemente.
Quanto ao conteúdo, divido o discurso em três partes essenciais. Na primeira, Putin justificou a guerra com os argumentos de sempre: a ameaça que uma extensão da NATO representaria para a Rússia e a necessidade de libertar o povo da Ucrânia que, na sua ótica, está refém do “regime de Kiev”. A segunda, consistiu numa exaltação patriótica: o elogio e o apoio aos combatentes; a defesa dos valores russos contra as “perversões” do ocidente que, segundo afirmou, manipula “traidores” para subverter a ordem do estado. Por fim, a terceira apontou para o futuro próximo. Esta foi a parte que trouxe novidades, algumas angustiantes.
Se a guerra obrigou o ocidente a diminuir a dependência energética da Rússia, para Putin, também terá demonstrado que esta consegue encontrar alternativas aquele. As soluções foram identificadas: incremento da cooperação com o médio e extremo oriente, reforço da aposta no ártico. A aproximação entre Rússia e China é uma das consequências mais preocupantes desta nova realidade. Duvido que a China abandone a sua ambiguidade, que enquadra num discurso aparentemente sensato e pacifista. No entanto, existe o perigo real da China sair como principal beneficiada deste conflito, passando a contar com um aliado dependente, a Rússia, capaz de fazer o “trabalho sujo” por sua vez. Sobretudo, a auto suspensão russa do tratado de não proliferação de armas nucleares é uma irresponsabilidade indesculpável. Não só pela ameaça que contém como, também, pelo seu potencial desestabilizador e de incentivo a outros países que apostam neste tipo de armamento.
O discurso de Putin foi de imediato contrariado pela NATO. Percebe-se que o tenha feito, mas tal suporta a tese de Putin de que o conflito é entre a Rússia e o ocidente. A tese foi reforçada quando Biden, o presidente da principal potência da NATO, respondeu ao discurso de Putin desde Varsóvia. Como ideias fortes, a constatação que, um ano depois, a Ucrânia continua livre graças à ajuda do ocidente. Também, que o mundo está perante uma luta global entre democracias e autocracias. Pondo as coisas nesta perspetiva, isto significa que esta luta irá, fatalmente, prolongar-se para além da guerra da Ucrânia. Por fim, Biden reforçou que o artigo 5 da NATO está sólido, o que é a melhor garantia para países como a Polónia. Pode ser ingenuidade, até porque estou no grupo dos que não acreditavam que a Rússia iria invadir a Ucrânia, mas duvido que, depois de tudo o que se passou neste último ano, Putin ainda equacione invadir um país da NATO, se é que alguma vez o fez.
No final deste dia, registo com desilusão que nenhuma das partes - invasor e aliados do invadido - falou seriamente na possibilidade de negociar. No seu discurso, Putin aludiu que queria a paz. Ninguém aproveitou a deixa para responder-lhe: se quer a paz, acorde um cessar fogo e aceite sentar-se à mesa sem condições prévias. Passado um ano da invasão russa da Ucrânia, a guerra avançou de tal forma que nenhuma parte está em condições de ceder. Como sublinhou Biden, o conflito é agora entre democracia e autoritarismo, tal como antes foi entre democracia e comunismo. Também, este tempo evidenciou a total inoperância da ONU e a obsolescência da forma como está estruturada. No meio disto, o povo ucraniano, a parte que sofre, e muito, com a invasão e a continuação da guerra, não teve voz própria no dia de hoje. Nem sequer Zelensky teve protagonismo, deixando que a defesa da Ucrânia fosse assumida por terceiros.
Conclusão, o conflito está mesmo para durar, a guerra é agora entre ocidente e Rússia, e nenhuma das partes equaciona negociar. Recuperando uma frase do inicio, o dia de hoje parece vindo do tempo da guerra fria.