Opinião

Que trabalho digno?

Que trabalho digno?

António Filipe

Membro do Comité Central do PCP e professor universitário

Não há agenda do trabalho digno sem enfrentar as enormidades legislativas que privilegiam os interesses do patronato e fragilizam de forma inaceitável a posição dos trabalhadores: baixos salários, precariedade, horários desumanos, arbitrariedade patronal

A Assembleia da República está a concluir um processo legislativo que foi apresentado pelo Governo PS como emblemático no início desta legislatura e a que foi dada, com pompa e circunstância, a designação de “agenda para o trabalho digno”.

Quem apresenta como objetivo de um processo legislativo promover a “dignidade”, está a reconhecer implicitamente que o ponto de partida é a indignidade. E se o objetivo é promover a dignidade nas relações laborais, seria imperativo enfrentar as causas da indignidade atualmente existente, resultante em larga medida de medidas tomadas pelos Governos PS/PSD contra os trabalhadores e que os Governos do PS se recusaram a alterar, rejeitando, com o apoio dos partidos da direita, todas as propostas apresentadas pelo PCP com esse objetivo.

De facto, o Governo PSD/CDS promoveu, entre 2011 e 2015, o maior ataque aos direitos dos trabalhadores desde a conquista da democracia. Cortes de salários, de subsídios e de prestações sociais, eliminação de feriados, aumento das jornadas de trabalho, aumento da precariedade, liberalização dos despedimentos, redução drástica das indemnizações por despedimento, e, não menos importante que tudo o resto, a eliminação na lei do princípio do tratamento mais favorável do trabalhador e a desvalorização da contratação coletiva dando ao patronato a possibilidade de provocar a caducidade das convenções coletivas liquidando os direitos obtidos por essa vida.

O Governo PS, desde 2015, sempre se recusou a alterar esse estado de coisas, e não só rejeitou todas as propostas nesse sentido, sempre apoiado pelos partidos da direita (que enquanto vociferavam contra o Governo que diziam ser de extrema-esquerda não hesitavam em dar a mão ao PS sempre que se tratava de defender os interesses dos patrões), como ainda aprovou o alargamento do período experimental para seis meses, lançando mais uma acha na fogueira da precariedade.

Quem conhece o mundo do trabalho sabe da iniquidade que pauta as relações laborais perante a irrelevância da atuação da Autoridade para as Condições do Trabalho. Avultam os abusos do patronato perante este estado de coisas. Horários desregulados que não permitem conciliar minimamente a vida profissional com a vida familiar, trabalho extraordinário não pago, proibição da atividade sindical nas empresas, ameaça de despedimento de quem tenha a ousadia de se sindicalizar, impunidade dos despedimentos ilegais, situações de assédio, salários que se degradam em carreiras estagnadas que fazem com que se empobreça a trabalhar.

Quando vemos deputados do PS na Assembleia da República defender que as relações laborais devem ser reguladas pela liberdade contratual entre o patronato e cada trabalhador individualmente considerado, já não estamos perante o socialismo na gaveta, mas perante uma ignorância histórica que sepulta bem fundo qualquer resquício de um pensamento socialista.

E podemos mesmo ir mais atrás. Foi o padre católico francês Henri Dominique Lacordaire, que viveu entre 1801 e 1861, que escreveu que “entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo, é a liberdade que oprime e a lei que liberta".

A origem, e razão de ser, do direito do trabalho, assenta precisamente no reconhecimento da desigualdade económica existente entre o empregador e o trabalhador. Para que exista uma relação digna e justa é necessário que a lei intervenha num sentido favorável ao trabalhador, consagrando direitos laborais, garantindo direitos sindicais e promovendo a contratação coletiva. Só através da contratação coletiva, resultante da negociação entre o patronato e os sindicatos representativos dos trabalhadores, é possível fazer da fraqueza de cada trabalhador individualmente considerado, uma força coletiva capaz de impor soluções de progresso nos direitos laborais.

Não há, por isso, agenda do trabalho digno que não passe pela dignificação da dimensão coletiva da negociação das condições de trabalho e pela consagração do princípio do tratamento mais favorável do trabalhador, ou seja, que os direitos consagrados na lei não prejudiquem tratamento mais favorável obtido por via da negociação coletiva.

O que se passa em matéria de contratação coletiva é que o Governo PSD/CDS eliminou um princípio básico da contratação coletiva que é o de que uma convenção em vigor só possa deixar de vigorar quando for substituída por nova convenção. Em vez disso, passou a ser possível ao patronato fazer caducar unilateralmente as convenções coletivas, não as substituindo por outras, fazendo regredir dramaticamente as condições de trabalho através da liquidação pura e simples de direitos conquistados por via da contratação coletiva. O Governo PS, ao mesmo tempo que afirma hipocritamente a sua intenção de valorizar a contratação coletiva, recusa-se a acabar com a possibilidade do patronato determinar unilateralmente a caducidade das convenções.

O resultado que se avizinha com a conclusão do processo legislativo sobre a chamada agenda do trabalho digno, caracteriza-se, não tanto pelo que consagra, mas pelo que se recusa a consagrar. Distingue-se menos pelas propostas aprovadas do que pelas propostas rejeitadas por convergências entre o PS e o PSD, no sentido de manter intocados os interesses do patronato.

Não foi só o caso da manutenção da caducidade da contratação coletiva. Foi também, entre muitos outros, o caso da recusa da redução dos horários para as 35 horas semanais e sete horas diárias no setor privado, ou das restrições à laboração contínua e do trabalho por turnos, limitando-os às situações estritamente necessárias e devidamente justificadas.

Contudo, entre as novidades surge a iniquidade de se presumir a aceitação do despedimento pelo trabalhador caso este aceite o pagamento da indemnização. Ou seja, um trabalhador despedido, que fica sem meios de subsistência, deixa de poder impugnar judicialmente o despedimento caso aceite a indemnização.

E chamam a isto agenda do trabalho digno.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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