No último dia 19 de janeiro, quinta-feira, ecoava um dos momentos mais marcantes dos últimos anos para a comunidade travesti, trans, não-binária e de género diverso em Portugal.
Este eco foi provocado pela ativista travesti brasileira, Keyla Brasil, que se dirigiu ao palco em protesto contra a escolha de um actor cisgénero para representar uma personagem trans, Lola, na peça de teatro “Tudo Sobre a Minha Mãe”, que estava a decorrer no Teatro São Luiz, em Lisboa. Num momento político e social em que os movimentos anti-trans crescem a passos largos, estamos cientes do risco, coragem e determinação de Keyla Brasil quando sobe ao palco exigindo mais representatividade de pessoas da comunidade. Keyla Brasil tornou palpável a discussão sobre representatividade, sobre a própria hipocrisia do meio artístico. Uma hipocrisia que esquece aquilo que, de facto, a arte representa. Arte é... política.
Querer destituir ou privar a arte da política é um apagamento histórico às mudanças sistémicas desde sempre veiculadas pela cultura. É, também, um sinal de alienação e aproveitamento estrutural. Esvaziar a cultura de ação política é um ato de crueldade, principalmente nos atuais contextos em que vivemos. A arte é também revolução.
E é de revolução que falamos, é de mudanças estruturais, organizacionais e sistémicas que precisamos. Foi dado um grito que ecoa numa sociedade despida de qualquer vontade e solidariedade política. Um grito que deveria ser suficiente para nos causar ressonância, pela dor e sofrimento que transporta, pela humilhação histórica sentida pela contínua exclusão. Deixemo-nos de nos referir ao que é certo e ao que é errado, quais são as maneiras aceitáveis ou não aceitáveis: escutemos antes as nossas incomodidades e desconfortos sentidos quando alguém que está numa posição de maior fragilidade social coloca o nosso privilégio no topo da atenção. Entender o nosso privilégio é compreender como a nossa sociedade funciona e quais são os seus mecanismos de manutenção de poder.
Depois deste protesto, e de uma forma reiteradamente colonialista e binária, foram tantas as vozes a voltar a deitar-se no manto da superioridade ao afirmar como devem ou não ser defendidas as causas pelas demais pessoas, principalmente quando estas são pessoas migrantes, racializadas, negras, trabalhadoras do sexo, trans, travestis, não-binárias, ou qualquer outro grupo vulnerabilizado. O certo e o errado. Quem pode e não pode. Quem deve e não deve. Que corpos podem ou não podem.
Voltamos a virar as costas à realidade e a esconder-nos atrás dos artifícios linguísticos, sociais e culturais para nos desresponsabilizarmos pela mudança que cabe a todas as pessoas. Mas não podemos, continuamente, esperar que as mesmas pessoas que são violentadas pela sociedade sejam as que nos acalmam, apaziguam, nos deem a mão, que nos façam ter consciência. Que nos falem com carinho e respeito, que tenham paciência com as nossas dúvidas e incertezas.
Sim. Ouvimos um grito bem claro de que, enquanto sociedade, temos de nos responsabilizar pelas nossas decisões, escolhas e ações. Chega de falarmos do alto do nosso privilégio. É preciso descer à realidade para ter uma escuta ativa ao que as pessoas que nos gritam têm para dizer.
Não. Não podemos continuar a vulnerabilizar mais quem já é vulnerabilizada por esta sociedade. Não podemos continuar a achar que podemos mercantilizar a sua experiência, a sua vivência e a sua história em detrimento da sua segurança e cuidado.
Este percurso histórico não pode continuar invisível, como se só hoje pessoas trans existissem. Nós sempre estivemos presentes. Presentes em qualquer luta histórica. Presentes mesmo quando nos renegavam para o silêncio e para o apagamento.
Os mecanismos sociais que operam, principalmente aqueles que centralizam ou marginalizam diferentes pessoas são amplificados pelo silêncio, pela falta de ação e pela inércia. No fundo, numa sociedade centrada nas cis-normatividades, quem continuará a sofrer empurrões para as margens, serão sempre as mesmas pessoas. As mesmas que continuarão a ver a sua identidade invalidada, roubada, gozada e estereotipada; são as mesmas que continuarão a sofrer nas fronteiras físicas e sociais; são as mesmas que continuarão a ver emprego e educação negadas; serão as mesmas que continuarão a ver o acesso à saúde elementar transfigurado em processos de normalização; serão as mesmas que irão ver a sua autodeterminação questionada e apagada.
Não podemos nunca esquecer que a nossa comunidade morre por uma simples razão: existir – o direito mais básico a que todas as pessoas deveriam ter acesso. Existir.
Quando lutamos por sobreviver, não é o amor, a calma, a paciência que nos salvam. Amor, calma e paciência é para quem tem privilégio, para quem pode e para quem está num lugar de projeção social que lhe permite ter segurança e compreensão.
Quando lutamos para sobreviver, o nosso grito tem de ir mais longe e mais forte.
Não posso ficar indiferente ao que me toca, pessoalmente e socialmente.
Que este grito de Keyla nos fique presente e não caia no esquecimento, como tantas vezes acontece. Basta de ignorar dor da incomodidade, fingir que nada aconteceu e seguir indiferente, continuamente atropelando as margens e afastando-as.
Nota final: este texto faz parte de um conjunto de conteúdos que o Expresso publica para falar diretamente com os leitores mais jovens e sobre aquilo que os afeta mais de perto. Se tiver dúvidas, sugestões ou críticas, envie-nos um e-mail.
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