Crianças pretas precisam que lhes digam que é permitido sonhar todos os sonhos. A representatividade importa e garante que elas se possam visualizar sem medo e sem limitações em lugares incríveis a fazer coisas incríveis
“Eu queria muito ser a preta diferente. Negava a minha negritude a todo o custo. Só me esquecia que a preta diferente que eu me esforçava arduamente para ser ainda era uma preta. No mar de branquitude eu sou a gota que destoa. A pele. O cabelo. O apelido. A ancestralidade. Ainda estava lá tudo. E gritava. Bem alto.”
No meu tempo, há 20 anos atrás, ser-se criança e ser-se negro em Portugal era como enfrentar um leão grande e forte dia sim, dia não. O primeiro que enfrentei foi no jardim de infância, porque me colocavam de parte nas brincadeiras. Quando finalmente me chamavam para brincar às famílias era para ser a criada. Na altura eu não entendia bem o porquê, então só aceitava.
Uma vez, no auge dos meus 20 e poucos anos, eu li algures a pergunta “Tu és tímida ou foste silenciada?”
Hoje, eu sei que fui silenciada.
Em casa, fui instruída a não arranjar sarilhos, porque já era muito difícil ser-se respeitado e conquistar coisas quando se tinha a pele mais escura. Na escola, não me era dada a vez para SER. Era demasiado pequena para perceber o que se passava e talvez por isso tenha aprendido e calar a boca, a não ripostar, a não dar nas vistas, a agradar. Aprendi que para ser tolerada tinha que baixar a cabeça e responder aos comentários menos simpáticos com um sorriso nervoso para ainda assim ser subestimada. Aceitei que me amassem pouco e aprendi a amar(-me) pouco: eu, o meu cabelo, o meu background cultural, os meus traços e o meu tom de pele.
É que, sem perceber, tudo à minha volta gritava que eu era um erro. Não, isso não era dito com todas as letras, mas o que haveria de pensar uma criança negra que consome conteúdo onde não se vê, e quando se vê é de uma forma estereotipada e completamente irrealista? O racismo ensinou-me que o meu cabelo precisava ser alisado para eu parecer apresentável, que eu precisava ser o mais europeia possível para não me tornar uma piada exótica e para um dia conseguir um emprego, e que deveria ser mais clara para que os rapazes quisessem namorar comigo. “Sorte” a minha que pelo menos o português de Portugal eu falava bem. 20 anos depois, assassinei essa ideia e enterrei-a num lugar bem refundido na minha mente. Antes disso, neguei a minha negritude como pude. Anulei a minha identidade a pouco e pouco, até me tornar figurante da minha própria vida.
Levei 20 anos para perceber que fui ludibriada. Ficou a cicatriz (daquelas impossíveis de ignorar) e uma criança interior que continua a fazer perguntas e a pedir socorro.
Cuidar da autoestima de uma criança negra é importante porque o recorte e a racialização acontecem o tempo todo e em praticamente todas as esferas da vida. Uma criança branca não precisa se preocupar em reivindicar a sua identidade porque isso está por todo o lado: nas revistas, nos filmes e cartoons e nas instituições. A estrutura está construída de forma a que o branco não saiba e nem necessite saber o que é ser-se branco, porque este se visualiza apenas como pessoa. A pessoa negra precisa se afirmar para si para depois se posicionar na sociedade, ou perde-se, e é praticamente engolida pela normatividade europeia.
Crianças pretas precisam que lhes digam que é permitido sonhar todos os sonhos. A representatividade importa e garante que elas se possam visualizar sem medo e sem limitações em lugares incríveis a fazer coisas incríveis. Eu fui carente de referências, e isso faz uma diferença brutal na construção da autoestima dos adultos de amanhã. Coloquem-nas a ver Black Panther, ofereçam livros que inspirem como Marielle e o Dia da Fotografia de Nuna e Lala Berekai, e sejam vocês mesmos as fontes de inspiração para elas, não porque somos perfeitos, mas porque também nós enquantos adultos precisamos buscar as nossas melhores versões todos os dias. Se forem pessoas brancas, procurem informar-se e educar-se sobre como o racismo opera na vida de uma pessoa negra. Não se baseiam em “achismos” que podem atrapalhar e negligenciar a sua existência.
Crianças pretas precisam sentir-se seguras nos espaços onde passam boa parte do tempo, como a casa e a escola. As violências vividas por crianças negras dentro do espaço ensino por colegas e professores é recorrente e mais uma ferramenta da herança colonial. Eu vivi isto, os meus irmãos mais novos também. Não pode ser tolerado. É urgente denunciar para que se pare de normalizar o que é absurdo.
Dito isto, um dos meus grandes desejos para 2023 é que se amem as crianças pretas um pouco mais. Muito mais. E que elas sejam instruídas a se amarem em primeiro lugar. Precisamos estar atentos a elas e quebrar ciclos tóxicos geracionais que nos consomem e nos destroem. Ah, e digam às crianças de cabelo crespo que os seus cabelos são lindos. Levem-nas para as nossas terras africanas e ensinem-nas as nossas línguas, para que elas sintam orgulho das suas raízes e se apropriem delas sem medo algum. Ouçam-nas, mesmo quando elas não dizem em palavras.
Amem as crianças pretas como elas merecem. As de hoje, as que virão e as que um dia já foram. Amar é proteção, é poder e emancipação.
As imagens desta crónica são excertos do meu livro publicado em maio de 2022 “Para Que Fique Bem Escurecido”.
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