Opinião

Quando tinha 16 anos era contra o casamento homossexual. Hoje sei que sou queer

Quando tinha 16 anos era contra o casamento homossexual.  Hoje sei que sou queer

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

Que esta crónica seja uma prova de que as opiniões mudam, as pessoas evoluem. E ainda bem. Triste o mundo que fica parado na pasmaceira e ignorância

Cresci numa família conservadora, embora com o passar do tempo tenhamos crescido e evoluído todos, como tenta demonstrar o título desta crónica. No entanto, na minha adolescência, passei por muitas questões para as quais não tinha respostas no meio familiar.

Aos 15 anos comecei a questionar a minha sexualidade. Até aí eu tinha gostado de rapazes, mas volta e meia havia ali alguma coisa por raparigas. Na altura, achava que ou se era heterossexual ou se era lésbica/gay, não havia outras opções. Ainda com 15, apaixonei-me pelo João e pensei,“ufa, estou safa. Se gosto de homens, não gosto de mulheres”.

A ideia de poder ser lésbica deixava-me muito ansiosa, especialmente porque não queria desiludir os meus pais — falarei disto mais à frente —, então, reprimi isso em mim.

Na disciplina de Filosofia, no secundário, uma das avaliações era feita através de um texto argumentativo em que tínhamos de escolher se éramos a favor ou contra o casamento homossexual e defender a nossa posição. Eu tinha 16 anos e escolhi escrever como era contra, não fosse eu, na altura, conservadora. Vi-me aflita para conseguir arranjar argumentos válidos e foi a pior nota que tirei no secundário.

Neste contexto de repressão, há muita gente que defende que os comportamentos homofóbicos são reflexo da repressão da própria homossexualidade ou orientação não hetero. Defendo que tanto pode ser repressão como não. Do meu ponto de vista, este tipo de pensamentos homofóbicos vêm da educação, do meio em que se vive, das pessoas com quem se convive (dentro ou fora de casa). Se é repressão de orientação sexual, é outra questão que pode ter ainda mais peso juntamente com os valores da pessoa com comportamentos homofóbicos.

Em contexto de violência contra a comunidade LGBTQIA+, este tipo de comportamentos têm a mesma carga de violência emocional para a vítima, quer sejam fruto da educação, quer venham de uma repressão de orientação sexual da parte do abusador. Por isso, há que proteger a vítima e lutar contra os demónios da repressão em nós, se for caso disso.

Percebo que muitas pessoas não queiram falar sobre estes assuntos relacionados com a comunidade LGBTQIA+. É normal ter medo do que sai fora das nossas realidades. Toda a gente tem receio do que não conhece. No entanto, acima de todos os medos e receios deve estar o amor.

A descoberta que a sexualidade é um espectro

Quando fui estudar para a Faculdade de Belas Artes do Porto, apercebi-me de que a sexualidade é um espectro e não temos de ser necessariamente uma coisa ou outra. Vi como as pessoas que lá estudavam viviam a sua sexualidade, de forma não limitadora no género e na orientação sexual. Assim, fiz as pazes com esse meu lado não normativo e passei a pensar: se eu gostar de mulheres também, é ok, não me tira nenhum pedaço e não deixo de ser quem sou. (Mal sabia eu que esse caminho de liberdade me podia fazer conhecer mais de mim.)

Entretanto, mesmo tendo relacionamentos heterossexuais, às vezes “achava muita piada” a uma mulher. Nunca o confessei a ninguém até, nos meus 20’s, fazer um jogo de bebedeira com a minha melhor amiga, em que começámos a dizer quem nos atraía num bar. E eu falei de uma rapariga que lá estava. Ao que a minha amiga me respondeu algo como “tu tens um lado queer, não tens?”

Tenho. Nos meus 20s aceitei a possibilidade de que a pessoa da minha vida (que pode ir mudando conforme a vida vai) poderia ser homem, ou mulher, ou pessoa não-binária, que não interessava que genitais teria, interessava a pessoa. Assim, percebi que não gostava só de homens cis e cheguei à definição de “queer”. Ser queer tem uma definição muito ampla, uma das mais amplas do espectro LGBTQIA+. Como estou farta de restrições e definições estanques, é com esta definição que me identifico mais. No entanto, identifico-me como mulher e tenho orgãos genitais femininos — sou uma mulher cis.

Claro que num mundo ideal não iria interessar para nada qual é a nossa orientação sexual, desde que fossemos felizes. No entanto, no mundo que temos, com tantos problemas e preconceitos, arrumar as ideias pode ajudar. Há muita gente que não gosta de rótulos: se não fazem sentido para ti, não escolhas nenhum. Os rótulos fazem sentido para quem os quer e só cabe a cada um escolher o seu próprio rótulo.

As definições de género, orientação sexual e sexo: uma breve e incompleta nota

É normal que isto de ser cis, trans, queer, gay, possa parecer um emaranhado de conceitos. Estes parâmetros dividem-se em três grandes pilares separados: identidade de género, orientação sexual e órgãos genitais (sexo).

Identidade de género é o género com o qual nos identificamos: homem, mulher, pessoa não-binária, género fluído, …

Orientação sexual é por quem nos atraímos. Há diversas orientações sexuais, como a tão aplaudida heterossexual, e depois a homossexual, bisexual, pansexual, assexual, demissexual …

Os nossos órgãos genitais são os órgãos que temos, quer sejam aqueles com os quais nascemos ou os que quisermos alterar.

Ser-se cisgénero é identificar-se com o género atribuído à nascença tendo em conta os órgãos genitais com que se nasce. Ser-se trans é identificar-se com o género oposto ao género atribuído à nascença tendo em conta os órgão genitais com que se nasce. Se uma pessoa nasce com orgãos genitais femininos e se identifica como mulher, então é mulher cis. Se se identifica como mulher e nasceu com órgãos genitais masculinos, é mulher trans, quer faça a cirurgia para alterar os órgãos genitais, quer não faça.

Resta acrescentar que uma pessoa que nasça com órgãos genitais intersexo — os casos comumente chamados de “hermafroditas”— não precisa de escolher fazer a operação para ter o sistema reprodutor equivalente ao masculino ou ao feminino. Na verdade, pode escolher fazer a alteração ou pode simplesmente decidir ficar intersexo (a letra “I” da sigla LGBTQIA+ é referente a Intersexo). Esta escolha tem de ser da própria pessoa, com consciência e informação imparcial, sem pressão social.

A origem do preconceito contra a comunidade LGBTQIA+, um breve comentário

A ideia de que um verdadeiro casal é o heterossexual cis, de homem e mulher, está ligada à ideia de procriação. Trata-se de um conceito tradicional, apoiado pela doutrina da Igreja que é a base do conservadorismo em Portugal.

E que tal focarmo-nos no poder da fé ao invés da ideia estanque que a Igreja prega?

Até Deus mudou imenso a postura do Antigo para o Novo Testamento. Passou de vingativo e castigador para o maior exemplo de amor infinito e perdão incondicional, através do seu filho Jesus. Como é descrito, Deus é um dos maiores exemplos, para além de ser o mais famoso da história literária, de que é possível evoluir de opinião e de forma de agir.

Ser-se queer no meio familiar

Quando se cresce numa família tradicional, sentir que se é a pessoa diferente, que sai fora dos padrões que parecem funcionar para as outras pessoas, pode ser um choque, tanto para a pessoa queer como para as pessoas à sua volta. No entanto, há que acreditar que todas as pessoas são passíveis de evoluir. Não são só as crianças que se educam, mas também os adultos. Ainda, a educação vai até certo ponto: há uma grande parte que cabe ao autoconhecimento fazer acontecer. Se assim não fosse, não teríamos pessoas de esquerda com pais de direita; não teríamos filhos gays com pais conservadores.

Graças a esse choque, suprimi as minhas crushes por raparigas durante muito tempo, até que me cansei de desperdiçar caminhos, oportunidades e experiências. Lembro-me de dizer à minha terapeuta da altura que “a minha vida seria mais fácil se eu não fizesse nada em relação à crush”. Acreditei mesmo nisso, até ao dia, até ao dia em que decidi ouvir-me e aceitar-me. Facilmente percebi que a longo prazo é mais fácil vivermos na nossa verdade, por muito que o processo seja doloroso.

Com a confirmação de que era queer, tive medo que os meus pais ficassem desiludidos, mas depois pensei: não têm razão para ficar. Eu continuo a ser a filha que eles criaram. Se eles ficarem tristes por eu não ter uma vida mais livre de preconceito das outras pessoas, aí percebo mesmom bem, que apoiem mas fiquem preocupados, mas ter uma ou outra orientação sexual é natural, qualquer que ela seja.

Mais digo: se não aceitarias um filho/uma filha gay, trans, não estás pronto/a para ser pai/mãe. Claro que isso não impede que se tenham crianças, mesmo havendo esse preconceito. Longe de mim andar feita polícia queer a ver quem tem aptidões para criar crianças com informação e liberdade de auto-descoberta: não é o meu papel. Além disso, pais e mães podem evoluir de opinião, passar de intolerantes a tolerantes. Muitas vezes nem precisam de perceber, só precisam de aceitar e amar.

Mesmo com uma educação direcionada para liberdade, pode ser custoso para pais e mães terem filhas/os/es queer por diversos motivos, até porque ainda se trata, tendo a sociedade que temos, de todo um processo para a própria pessoa LGBTQIA+. Mas, pais, mães, façam um esforço por compreender. É da criança que criaram e viram crescer de que estamos a falar. Se for difícil para vocês, não é só o vosso filhe/filha/filho que pode precisar de apoio psicológico por ser um processo complicado de digerir, mas também vocês pais (e com uma pessoa terapeuta que não seja homofóbica nem transfóbica).

Deixo-vos um apelo: não sejam os pais e mães que em vez de defenderem filhas/os/es queer na ausência destes aquando comentários preconceituosos, respondem com tristeza, não pelo tipo de comentário, mas pelas filhas/os/es serem queer.

Se pretendes contar aos teus pais que és gay/queer/bissexual/…, lembra-te que não podes controlar a reação deles, mas podes escolher como e quando lhes contas.

Notas finais

Quase concluindo, quero novamente referir que é normal que tudo isto seja demasiada informação e que pareça mais tranquilizador tentar ignorar estas realidades que não se conhece. Mas, será isso viver o mundo real? Se não tivermos abertura para o que sai fora do padrão e não procurarmos perceber como as pessoas querem ser tratadas, estaremos a criar o melhor mundo possível para as pessoas de quem gostamos? Até que ponto os padrões que conhecemos com normais não são forçados?

A dura verdade é que ninguém está a salvo de preconceitos: toda a gente os tem. No entanto, há que fazer o trabalho de os desconstruir. Só assim criaremos um mundo em que cada pessoa pode ser quem realmente é sem receios, porque o que importa é mesmo o amor.

Se eu não tivesse aceitado quem sou, não conseguiria usufruir de tudo o que sou. Não teria tido uma relação que me enriqueceu tanto. Não teria ganhado uma pessoa incrível na minha vida.

Que esta crónica seja uma prova de que as opiniões mudam, as pessoas evoluem. E ainda bem. Triste o mundo que fica parado na pasmaceira e ignorância. Ainda piores são aqueles que preferem não ver.

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Se és vítima de preconceito por seres LGBTQIA+, podes sempre procurar ajuda em associações como o Centro Gis da Associação Plano i, A Casa Qui, Apav e ILGA.

*

As ilustrações incluídas na crónica são parte integrante da agenda para 2023 — Agora é que são elas! — da minha autoria.

Leituras sugeridas para aprofundar questões levantadas no texto:

— Foder?, de Bel Odid;

— Chamar as coisas pelos nomes — como e quando falar sobre sexualidade —, de Vânia Beliz.

Nota final: este texto faz parte de um conjunto de conteúdos que o Expresso publica para falar diretamente com os leitores mais jovens e sobre aquilo que os afeta mais de perto. Se tiver dúvidas, sugestões ou críticas, envie-nos um e-mail.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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