Opinião

Privação de liberdade para toda a vida: todas as pessoas são iguais perante a lei

Direção do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos

A propósito dos cidadãos afetados por doença mental que praticaram factos-crime, ou dos cidadãos inimputáveis que são condenados a detenção perpétua

A associação entre doença mental e violência encontra-se, desde há longa data, identificada. Contudo, a precisa natureza dessa associação continua – e continuará – a ser tópico de investigação e de debate em políticas públicas, uma vez que certezas nesta matéria ninguém pode ter. A Ciência, certamente, não tem. Não obstante, prevalecem medos e crenças do passado que, ao longo da História, foram persistindo, alimentadas pelo desconhecimento e, sobretudo, pelo estigma.

Quando o Coordenador Nacional para as Políticas de Saúde Mental enfatizava, no Dia Mundial da Saúde Mental, que o estigma da doença mental é ainda hoje uma realidade, alguns, porventura, entenderam essa afirmação como expressão de um certo exagero.

Estamos no séc. XXI e a sociedade aceita, e compreende, estar perante doenças que necessitam de intervenções terapêuticas em serviços de saúde adequados. Compreende, igualmente, que embora essas doenças impliquem frequentemente graves alterações do comportamento e do juízo crítico, as referidas intervenções têm de ser realizadas no estrito respeito pela dignidade humana e de acordo com o princípio incontornável de que todos os seres humanos têm direito à liberdade em situação de igualdade. Estas premissas, diga-se, são particularmente caras aos juristas, uma vez que estes alicerçam a sua praxis nos princípios constitucionais, nos direitos fundamentais e nas convenções internacionais que pugnam pela universalidade da titularidade de Direitos.

Assim, foi com espanto, e preocupação, que nos deparámos com a notícia sobre a posição do Sr. Presidente do STJ relativa à proposta de lei de Saúde Mental. Tal posição alimenta o estigma que, neste e noutros séculos, condenaram os doentes mentais injusta e injustificadamente a uma vida de exclusão social e reclusão. De facto, de acordo com literatura científica recente, a taxa de crime violento em 5 a 10 anos por pessoas com doença mental situa-se entre os 6 e 10%1, incluindo diagnósticos como esquizofrenia.

Porventura, a referida posição do Sr. Presidente do STJ reflete a forma como a Psiquiatria não tem sabido esclarecer todos os cidadãos – sejam cidadãos inimputáveis, cidadãos imputáveis ou cidadãos que não cometeram factos-crime – que a doença mental é um fator de risco de violência como outros o são, nomeadamente ser jovem, ser do género masculino, pertencer a um nível socioeconómico baixo e, sobretudo, ter tido anteriormente um comportamento violento. O passado criminal continua, aliás, a ser o principal fator de risco para doentes e não doentes.

De facto, todos os fatores mencionados têm um papel relevante na probabilidade de repetição de comportamentos violentos e, no entanto, não é por isso que a sociedade detém de forma vitalícia e preventiva os cidadãos com essas caraterísticas epidemiológicas.

Por outro lado, importa salientar que, mesmo considerando que o risco de crime violento de pessoas com doença mental possa ser ligeiramente superior à população sem doença, os tratamentos e acompanhamento para doentes mentais hoje disponíveis permitem uma gestão desse risco que no passado não se sabia – e não se aceitava – possível.

É nesse investimento, aliás em curso pela atual reforma de políticas de saúde mental, inscrita no PRR, que devemos todos colocar o foco da nossa participação cívica e a nossa exigência enquanto sociedade. Para que seja inequívoco o princípio plasmado no artigo 13º da Constituição da República: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.

1 Whiting, D; Lichtenstein, P; Fazel, S: Violence and mental disorders: a structure review of associations by individual diagnoses, risk factors, and risk assessment. Lancet Psychiatry, 2021, Feb, 8(2): 150-161.

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