É um edifício histórico bem no centro do Porto, com uma área correspondente a oito campos de futebol, onde já funcionaram departamentos de várias faculdades, laboratórios e uma escola de teatro - a Academia Contemporânea do Espetáculo. O proprietário do magnífico ex-colégio Almeida Garrett, na Praça Coronel Pacheco, era a Universidade do Porto. Mas em 2017, a Universidade resolveu passá-lo a patacas e arrecadar mais de 6 milhões de euros do fundo privado para quem alienou o edifício. A Câmara achou bem e, apesar dos protestos de alguns partidos e do Teatro Universitário, agora vai nascer ali mais um hotel, a somar às dezenas que continuam a brotar na cidade.
Não foi só esse edifício histórico que a Universidade do Porto vendeu a fundos imobiliários e à indústria turística nos últimos anos. Foi também a antiga Faculdade de Farmácia, bem no centro da cidade, em frente à Igreja de Cedofeita, que será em breve um empreendimento de luxo com 44 apartamentos para clientes ricos, “nacionais e estrangeiros”, num condomínio a que a holding proprietária decidiu dar o pomposo nome de “Edifício Pharmacia”, resgatando assim, como marca de prestígio, o acordo ortográfico anterior ao anterior acordo ortográfico…
Estes dois exemplos, entre tantos, somam-se à lógica geral de gentrificação das cidades e de mercantilização do direito à habitação, que contou com o contributo das Universidades, com a cumplicidade das autarquias, com a inação dos governos na construção de respostas públicas e com o incentivo da legislação que liberalizou o arrendamento e promoveu e lavagem de dinheiro e os investimentos especulativos por via dos vistos Gold. Os estudantes, que antes do boom do turismo e dos investidores estrangeiros eram um bom negócio para alguns proprietários, contam-se agora entre as vítimas deste processo. No ano letivo que agora começa, há menos 80% de oferta de casas e quartos para arrendar a universitários e os preços dos poucos espaços disponíveis aumentaram 10%. Ou seja, a situação é desesperante para grande parte dos 21 mil alunos deslocados, de entre os 50 mil colocados este ano no Ensino Superior.
Os pedidos de ajuda multiplicam-se na proporção inversa das respostas. O “mercado” tem outras prioridades: os turistas, que pagam ao dia e pagam bem; e os “nómadas digitais”, que podem pagar muito mais. Os proprietários de Lisboa anunciaram até uma retaliação porque as rendas reguladas só podem aumentar 2%: de acordo com a Associação que os representa, “nenhum proprietário vai colocar nenhum imóvel, não só para estudantes” no mercado de arrendamento. "Olho por olho, dente por dente", diz a porta-voz dos proprietários, mostrando como se exerce o poder numa economia de mercado.
Mas a que propósito ficámos dependentes do mercado para cumprir um direito social básico? Aliás, dois: o direito à habitação e o direito à educação, que comporta também ter como comer e onde dormir para se poder estudar. Por que razão aceitámos a prisão liberal da lei da oferta e da procura, para exasperação de pobres e remediados?
O governo reconhece que o investimento em alojamento estudantil, que só chega a 14% dos estudantes deslocados, esteve “em stand-by”. “As instituições promotoras reservaram os investimentos previstos para beneficiarem desta fonte de financiamento”, a saber, o Plano de Recuperação e Resiliência, declarou a Ministra. António Costa, que se habituou a responder aos problemas com mais anúncios, fez uma cerimónia para assinar contratos com entidades promotoras que daqui a vários anos poderão dar frutos. No imediato, no que conta, não faz o que poderia: limitar e retirar licenças do alojamento local, impedir legalmente que tantas casas tenham outro fim que não a habitação, adaptar espaços do Estado para acolher estudantes, estabelecer limites às rendas, acelerar o investimento público, não autorizar a alienação de património público das instituições de ensino superior para alimentar o mercado da especulação.
Em Portugal, o parque habitacional tem crescido muito mais que a população ( quase o triplo desta, de acordo com o INE). Não faltam espaços para habitar. Falta regular a sério este setor. A subida de juros, por outro lado, é já um susto para milhares de famílias, uma anunciada corda na garganta. Também neste domínio é preciso restringir o “livre funcionamento do mercado” e impor-lhe critérios de bem comum e de racionalidade. Moratórias, limitação de spreads, taxas máximas de aumentos das prestações ao banco… Debata-se, com seriedade, as soluções mais eficazes e a melhor combinação entre elas. Deixar “o mercado funcionar” com as suas regras e atirar para as calendas as soluções estruturais é que é um verdadeiro desastre democrático.
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