16 setembro 2022 0:05
A memória dos velhos tornou-se obsoleta. Os novos delegam-na na tecnologia. Um dia, descobre-se que ela é o “Eu”
16 setembro 2022 0:05
Na minha primeira redação, havia um mítico editor de cultura de cabelos grisalhos esvoaçando ao sabor da ira que nos seus momentos mais alucinados me espantava com a sua sabedoria, esbugalhava os olhos e dizia: “O diabo não é diabo porque se chama diabo; o diabo é diabo porque é velho.” Na altura, tinha dificuldade em compreender a profundidade da frase. Há algo que pessoas com 30 anos não conseguem conceber: os jornalistas mais velhos eram o nosso Google. Dependíamos deles e da sua boa vontade para com a nossa ignorância disfarçada de “está aqui na ponta da língua”. Eram a memória e a cultura que não tínhamos, e que polvilhavam por generosidade os nossos artigos. Por isso, venerávamos as excentricidades dos seniores: só eles nos podiam salvar da nossa inexperiência e burrice. Foi o Google que tornou a memória dos mais experientes desnecessária. O Google tornou os seniores redundantes. Qualquer um que faça enter tem acesso aos detalhes mais ridículos da memória do mundo. Às vezes, parece injusto. Era tão difícil encontrar uma data, confirmar um facto. Não havia livro — talvez o centro de documentação —, mas um velho culto safava-nos naquela data, naquele nome. Afinal, era o diabo. E tenho a honra de ter sido amigo de muitos desses belzebus: o Torcato, o David, o César, o Rogério, o Roby: o equivalente a 2/3 do saber da Biblioteca Nacional — e todos já a jogar “Trivial” no inferno dos jornalistas.
Este é um artigo do semanário Expresso. Clique AQUI para continuar a ler.