A alocação direta de verbas do PRR à saúde mental é particularmente valiosa e pode representar uma oportunidade, mas as medidas que estão previstas são manifestamente insuficientes
A queda de 33% do investimento público no SNS em 2022 face ao período homólogo foi esta semana notícia de capa do Expresso. Dados da Direção Geral do Orçamento revelam que, apesar do orçamento para a saúde ser 2,5 vezes superior ao de 2021, o montante investido de janeiro a julho de 2022 foi apenas 12% do orçamentado. A menos que a partir de agora se invista 10 vezes mais por mês, não só o montante global ficará abaixo do ano anterior, como fica ameaçada a própria execução dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
No caso particular dos serviços de saúde mental do SNS o investimento é historicamente baixo, rondando atualmente os 5% do orçamento total da saúde. É essa a estimativa do coordenador nacional das políticas de saúde mental, Prof. Miguel Xavier, que defende – com muita razão – que este investimento deveria duplicar ou triplicar nos próximos anos. Infelizmente, não só os valores orçamentados não são totalmente investidos, como nem sempre uma necessidade óbvia de maior orçamentação para uma determinada área resulta na ocorrência da mesma, como nos mostra a experiência.
É por isso que a alocação direta de verbas do PRR à saúde mental, num total de 88 milhões de euros, é particularmente valiosa e pode representar uma oportunidade para resolver problemas que se têm vindo a agravar nos últimos anos. No entanto, a alocação que está planeada para essas verbas tem levantado preocupações a quem trabalha nos serviços de saúde mental do SNS, uma vez que, embora se debrucem sobre medidas meritórias, são manifestamente insuficientes, ou mesmo omissas, em relação a pontos que são já neste momento um problema – e cujas condições poderão agravar-se ainda mais - como é o caso dos serviços de urgência psiquiátricos e das unidades de internamento de doentes psiquiátricos agudos.
De acordo com a informação publicada no PRR, as verbas serão alocadas a: 1) Criação de 40 equipas comunitárias de Saúde Mental (adultos e outras para crianças e adolescentes); 2) Programa de desinstitucionalização com a criação de residências para reintegração na comunidade; 3) Reforço da articulação com os cuidados de saúde primários; 4) Requalificar as instalações dos serviços locais de saúde mental e criação de novas unidades de internamento; 5) Estratégias de prevenção e promoção da Saúde Mental; 6) Melhoria dos cuidados para pessoas com demências; 7) Alargar a rede nacional de cuidados integrados para a SM; 8) Reconfiguração das unidades forenses no âmbito do Ministério da Saúde.
Já tive oportunidade, num artigo de opinião anterior, de realçar os méritos das medidas elencadas, mas também de manifestar preocupação pelo descurar dos cuidados psiquiátricos hospitalares, nomeadamente no que se refere às unidades de internamento de agudos, cuja única referência no plano é o ponto 4 (requalificar as instalações dos serviços locais de saúde mental e criação de novas unidades de internamento). Em concreto, prevê-se a construção de quatro novas unidades - Centro Hospitalar do Oeste (15 camas), Hospital Fernando da Fonseca (28 camas), Centro Hospitalar do Médio Ave (24 camas) e Centro Hospitalar Tondela-Viseu (36 camas) – que totalizam 103 camas. Há também referência no texto à requalificação das instalações já existentes, mas não é conhecido o número de camas a ser criado nem as suas localizações.
Importa salientar, que a publicação do Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro, estabeleceu os princípios gerais e as regras de organização e funcionamento dos serviços de saúde mental, a ser colocadas em prática pela Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental. Um desses princípios é o encerramento de todas as unidades de internamento de agudos em hospitais psiquiátricos, que totalizam à data 221 camas (119 no Hospital Júlio de Matos, em Lisboa, e 102 no Hospital Magalhães Lemos, no Porto).
Uma conta simples mostra que o número de camas que vai abrir nos hospitais gerais é menos de metade das que vão encerrar nos hospitais psiquiátricos. Embora o princípio de fazer transitar os cuidados agudos dos hospitais psiquiátricos para os gerais esteja correto, a transição teria que ser feita, no mínimo, em número equivalente, porque o problema não é o número de camas poder vir a ser insuficiente - ele já é insuficiente, mesmo antes das alterações previstas.
Em entrevista ao Expresso, o coordenador nacional das políticas de saúde mental afirma que as contas do número de camas não se fazem pelas camas atualmente existentes, mas pelo rácio populacional a ser atingido, de 10 camas por 100.000 habitantes.
Atualmente, nas regiões de Lisboa e Vale do Tejo e do Norte - precisamente aquelas em que se dará o encerramento de camas sem substituição – o rácio é de 10 e de 9 camas por 100.000 habitantes, respetivamente. Isso significa que depois da perda do número de camas que se prevê, estas regiões ficarão definitivamente abaixo do rácio. Mas há uma questão que torna estes dados ainda mais preocupantes – para além de este rácio ter sido definido pela DGS há quase 30 anos, estando por isso desatualizado, ele é bastante questionável de acordo com a literatura internacional, que recomenda números bem maiores. Por outras palavras: mesmo antes de encerrarmos camas, já estamos mal.
A prová-lo estão as taxas de ocupação dos hospitais de última linha da rede de referenciação de internamento psiquiátrico agudo, que nos relatórios de 2019 (anterior à pandemia) já eram próximos ou superiores a 100%, em virtude da sobrelotação dos restantes serviços de internamento pelo país fora. Aliás, essa sobrelotação tem sido em alguns casos noticiada pelos órgãos de comunicação social (https://portocanal.sapo.pt/noticia/305385/).
Esta insuficiência de camas traduz-se em vários problemas graves: internamentos de curta duração, insuficientes para a estabilidade clínica, pela necessidade de fazer vagar camas; sobreutilização dos serviços de urgência, não só por doentes que recorrem mais vezes, mas também pelos utentes que permanecem internados no próprio serviço de urgência sem condições minimamente adequadas, enquanto aguardam por vaga nos serviços.
Outra consequência internacionalmente reconhecida de um número insuficiente de camas de internamento de doentes psiquiátricos de agudos é a sobrecarga dos serviços prisionais, para onde acabam desviados doentes por incapacidade prévia de os diagnosticar e tratar. Já este ano, foi noticiado que o Hospital Prisional de Caxias, único hospital prisional do país, estava sem vagas para receber mais doentes psiquiátricos.
Por todas estas razões, e outras que não exponho aqui, é fundamental que as verbas do PRR, cuja disponibilidade é garantida, sejam usadas para resolver os problemas que já existem, e que correm o risco de se tornar ainda mais graves a curto prazo. Contar com outros investimentos futuros, cujo prazo e efetiva concretização são imprevisíveis, para problemas atualmente prementes pode fazer com que as soluções venham tarde demais. A recente demissão da ministra da saúde e a aparente falta de pressa para a substituir tornam o tema ainda mais preocupante, porque, enquanto esperamos, a passagem do tempo não é suspensa – e os problemas da saúde mental no SNS também não.
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