Opinião

Cento e oitenta dias depois

Cento e oitenta dias depois

José Matos Correia

Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD

Cento e oitenta dias depois, a nossa determinação em que Putin não triunfe e em que tenha de pagar pelos crimes que cometeu e pela destruição que provocou, só pode ser maior do que era no dia em que a injustificada e injustificável agressão se iniciou

Quando, em 24 de fevereiro passado, Putin deu a ordem para invadir a Ucrânia, estaria certamente a contar com uma guerra de curta duração, em que a (suposta) esmagadora superioridade militar da Rússia levaria a uma rápida rendição da Ucrânia e à aceitação, por esta, das condições humilhantes que lhe fossem impostas, nomeadamente em termos de cedências territoriais.

Cento e oitenta dias depois (que passaram no início desta semana), nada disso aconteceu. Pelo contrário. O invasor, em vez de vitorioso, está atolado nos meandros da sua incompetência. E é vítima dos seus próprios (e gritantes) erros de avaliação.

Desde logo, o erro de ter subvalorizado a capacidade de resistência dos ucranianos. É certo que a desproporção de forças é enorme. Mas isso, num conflito armado com estes contornos, é, apenas, um dos factores a ter em conta. Porque, tão ou mais importante do que isso, é a motivação de cada um dos contendores. E, se de um lado estão soldados que combatem porque lhe impõem que o façam, do outro lado está um povo corajoso, que luta pelo seu direito a existir enquanto comunidade política autónoma e a definir, por si, o seu caminho.

Ora, Putin e os seus apaniguados não foram capazes de compreender as lições da história do seu próprio país. Da fracassada invasão da Finlândia em 1939. Ou da desastrada intervenção no Afeganistão em 1979. Mas também o que sucedeu noutros casos comparáveis, em que a desproporção entre beligerantes era ainda mais notória, como foi o caso dos Estados Unidos no Vietname.

O segundo erro foi o de ter calculado mal o nível da resposta internacional de apoio à Ucrânia. Tendo em conta o que se tinha passado com os sucessivos atos de desestabilização dos países vizinhos (incluindo, em 2014, a anexação da Crimeia), Putin, tal como Hitler em 1939, terá considerado que, para além dos habituais protestos, nenhuma relevante reação concreta ocorreria. Mas não foi assim.

Ao invés disso, parte significativa da comunidade internacional, com os Estados Unidos e a União Europeia na liderança (sem esquecer o Reino Unido, que entretanto dela saiu) mobilizou-se, deixando claro não estar disposta a tolerar esta infâmia. E múltiplas sanções, de diversa natureza, foram impostas, o que, segundo projeções do próprio banco central local, deverá conduzir a uma contração da economia russa da ordem dos 10% em 2022.

Ao mesmo tempo, numa demonstração clara de determinação, porventura inusitada, significativas quantidades de armamento moderno foram enviadas para Kiev, incluindo viaturas blindadas, peças de artilharia e o muito eficaz sistema de mísseis HIMARS.

A situação parece, pois, estar para durar. Porque, por um lado, não se vislumbra que Moscovo consiga o êxito que, até agora, não atingiu. E porque, por outro lado, o reforço da capacidade militar ucraniana não parece ser suficiente para retomar o território ocupado.

Ora, qualquer conflito só pode terminar de uma de duas formas: ou com a derrota de uma das partes ou com um acordo negociado de paz. A primeira, como disse, não se vislumbra. Para a segunda, não estão, neste momento, reunidas condições mínimas.

Aliás, a este propósito, vale a pena recordar que há quem (normalmente aqueles que, de forma mais aberta ou mais envergonhada, alinham por Moscovo) critique os países que apoiam a Ucrânia por, supostamente, apostarem na lógica da guerra e não se esforçarem por encontrar saídas negociadas para o conflito. Sendo que, para eles, saída negociada significa a capitulação da Ucrânia e a satisfação dos desígnios da Rússia…

À medida que a sua incapacidade para subjugar os ucranianos se torna mais patente, a fuga para a frente de Putin acentua-se e com contornos cada vez mais insensatos e perigosos: a chantagem com a Europa em matéria de abastecimento de gás; a inviabilização da exportação de cereais ucranianos, indiferente às consequências dramáticas que isso acarreta, sobretudo para as populações dos países mais pobres (e que só agora parece estar a ser solucionada, graças também á intervenção de António Guterres); a absoluta insensatez no que toca á central nuclear de Zaporijia, que pode gerar uma catástrofe de proporções incalculáveis.

Do ponto de vista geopolítico, a irresponsabilidade de Putin está a gerar, também, uma consequência que, em circunstâncias normais, seria totalmente inaceitável.

Iniciou a guerra para reafirmar as suas pretensões imperialistas. Em vez disso, criou condições para uma progressiva menorização da Rússia face à China - tradicionalmente um antagonista, quando não mesmo um inimigo -, de cujo apoio, político e económico, está cada vez mais dependente. E para o potencial surgimento, sob a batuta desta (e não dele), de uma espécie de novo “eixo do mal”, envolvendo Estados tão pouco recomendáveis como a Bielorrússia, a Venezuela, Cuba ou a Birmânia.

Cento e oitenta dias depois, portanto, o Mundo mudou para (muito) pior. Cento e oitenta dias depois, milhares de civis e de militares morreram. Cento e oitenta dias depois, milhões de pessoas tiveram de fugir da sua pátria. Centos e oitenta dias depois, a Ucrânia é um país devastado, cuja reconstrução exigirá um investimento de muitos milhares de milhões de dólares.

Mas, precisamente por tudo isso, cento e oitenta dias depois a nossa determinação em que Putin não triunfe e em que tenha de pagar pelos crimes que cometeu e pela destruição que provocou, só pode ser maior do que era no dia em que a injustificada e injustificável agressão se iniciou.

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