Opinião

A crise na Urgência e a crise das urgências (de especialidades). Importa não confundir

A crise na Urgência e a crise das urgências (de especialidades). Importa não confundir

Miguel Soares de Oliveira

Médico, ex-presidente do INEM

A rutura de algumas especialidades e a sua dificuldade em assegurarem uma escala de urgência e a crise dos Serviços de Urgência gerais e a sua dificuldade em dar resposta ao excesso de procura são duas situações bem distintas. Assim, têm causas diferentes e, consequentemente, soluções também diferentes. Ambas necessitam de medidas para o curto e médio prazos, mas têm de ser tomadas já

Nestes últimos dias temos assistido a uma agudização da situação de rutura de algumas especialidades e da sua dificuldade em assegurarem uma escala de urgência, 24 horas/dia, 365 dias/ano. Em outros momentos - habitualmente no inverno, no “pico” das infeções respiratórias - assistimos a uma crise dos Serviços de Urgência (SU) gerais e a dificuldade em dar resposta a um excesso de procura pontual/sazonal.

São duas situações bem distintas - com causas diferentes e, consequentemente, soluções também diferentes - que importará não baralhar.

Para a segunda situação, será importante perceber que a atuação deverá incidir sobre a adequação da procura dos serviços de urgência hospitalares. Esta atuação deve ser feita, entre outras medidas, através da melhoria da informação disponibilizada aos cidadãos, do aumento da disponibilidade e da capacidade de resolução dos Cuidados de Saúde Primários das situações menos graves, do desenvolvimento de respostas domiciliárias às situações agudas, do aumento da capacidade de encaminhamento do INEM e SNS24 para serviços mais adequados a cada doente e da capacitação do INEM para resolução de situações menos graves sem necessidade de transporte aos SU.

Simultaneamente terá de haver uma atuação sobre a reorganização da oferta, tornando-a mais capaz de resolução das situações de forma rápida, eficaz, segura e eficiente. A constituição de equipas fixas de médicos nos SU, de dimensão adequada, com especialização nessa área específica da medicina, a maximização de utilização de novas tecnologias, no âmbito alargado da telemedicina, são outros dos eixos de atuação necessários.

Já no que diz respeito à crise das urgências das especialidades, as causas são diferentes e, portanto, a intervenção terá que ter outra forma, ritmo e objetivos. De uma maneira geral, as causas, já bem identificadas são:

1- Envelhecimento da classe médica. As “turmas” de centenas de alunos de medicina no período pós-25 de abril foram secundadas por vários anos de números muito reduzidos de vagas para os mesmos cursos existentes. Isto, naturalmente, explica que quando os primeiros chegarem à idade da reforma (se fizerem as contas, de 1974 até agora passaram 48 anos, logo quem tivesse na altura 18 anos, e iniciasse o curso, agora terá 66 anos) os seguintes não serão em número suficiente para os substituir.

E isto está neste preciso momento a acontecer (e irá, previsivelmente, durar mais 4-5 anos). Por outro lado, a dispensa legal de realização de serviço de urgência é possível de ser solicitada aos 50 anos (para trabalho noturno) ou aos 55 anos (para toda a atividade de urgência). Facilmente se perceberá que quem não a pediu até agora, poderá pedi-la se sentir que a situação se agrava ou que começa a ser o único disponível para o serviço;

2- A “fuga” para mercados de trabalho mais alicientes, seja no setor privado ou no estrangeiro. É indiscutível esse fenómeno, que se tem vindo a agravar e provoca um processo de retroalimentação positivo: saem médicos do Serviço Nacional de Saúde (SNS), as condições de trabalho dos que ficam pioram, leva a saída de mais médicos, e assim se está numa espiral da qual é difícil sair;

3- Concursos de contratação de jovens especialistas que são desfasados em vários meses do momento em que ficam “disponíveis para o mercado” e da realidade local, por terem carácter e lógica de distribuição de vagas nacionais;

4- Finalmente, mas não menos importante, a “dispersão” da oferta de determinados serviços/especialidades por vários hospitais, que tem vindo a acontecer nos últimos anos, numa tentativa de melhorar o acesso dos utentes.

Para esta crise as soluções terão que ser, necessariamente, outras. E umas terão que ser tomadas para terem efeitos no curto prazo e outros no médio/longo prazo, mas todas devem ser tomadas no imediato.

Em primeiro lugar, e sem demagogias, é necessário assumir que o objetivo (de todos) é garantir o acesso dos doentes urgentes aos serviços médicos de que necessitam. E esse acesso tem de ser garantido em tempo adequado.

No imediato, as opções não são muitas. Uma delas seria concentrando, mesmo que sazonalmente, essas urgências em menos locais, mas concentrando os escassos recursos existentes e dessa forma garantindo uma resposta tecnicamente adequada, 24 horas/dia, em determinados “pontos da rede”, tal como sucede no Norte desde há cerca de 20 anos para várias especialidades.

Ao invés de urgências que existem, de vez em quando, ou em alguns momentos do dia ou semana aqui ou ali, teríamos a possibilidade de assegurar urgências que funcionassem todas as horas, de todos os dias, com os recursos necessários. E parece evidente que o argumento de que isso reduziria o acesso – uma vez que as urgências das especialidades estariam concentradas em menos locais - é falacioso e meramente retórico, dados os fatos das últimas semanas.

Seria interessante criar incentivos (sejam eles remuneratórios, mais dias de férias ou outros) para os médicos com mais de 50 anos, para que se mantenham ou regressem às equipas de urgência. Repare-se que em alguns serviços estes médicos representam quase 50% do mapa de pessoal.

As férias são um direito. E após dois anos de pandemia, que obrigaram a uma excecional capacidade de resposta por parte dos médicos, são mais do que merecidas. Mas talvez fosse desejável que as mesmas fossem autorizadas de forma coordenada regionalmente.

Finalmente, e ainda no imediato, é fundamental dar autonomia aos hospitais públicos para realizarem as contratações que necessitam. Desconheço se o concurso aberto recentemente tem subjacente a lógica de dispersar recursos para tentar que “todos tenham tudo” ou, neste momento, optou por “concentrar recursos” para manter um número mínimo de serviços com capacidade de resposta total.

Infelizmente, é por vezes necessário trocar, temporariamente, o objetivo de lutar por um mundo ideal para assegurar um mundo vivo. Conviria rever os moldes desse concurso, caso contrário corre-se o risco de virem resolver coisa alguma.

Uma outra forma - que não sugiro, por ter consequências difíceis de prever - seria “liberalizar” em absoluto o mercado da oferta e da procura dos serviços médicos, permitindo que os hospitais ofereçam tanto quanto o necessário até conseguirem os médicos suficientes para preencher as escalas.

No médio e longo prazo é necessário tornar a carreira médica mais atrativa, revendo o seu sistema remuneratório e de benefícios, sendo que talvez a carreira da magistratura pudesse ser uma boa base de partida. Essa atratividade também dependerá de investimentos feitos em edifícios, equipamentos e tecnologia. O acesso à formação continua e a boa liderança são outros fatores, muitas vezes olvidados, que melhoram a motivação dos profissionais e que devem ser utilizados nesta tentativa de captação de médicos.

Para além disso, é fundamental que se possa planear os Recursos Humanos em Saúde, no médio e longo prazo, e que quando se identificam necessidades formativas as mesmas não fiquem condicionadas ou reféns de interesses de estruturas profissionais, nem limitadas por dogmas ideológicos (nenhum dogma é, habitualmente, uma boa solução). Havendo necessidade de médicos no SNS, não se entende porque não se poderá maximizar a capacidade formativa instalada no País, pública e privada, tanto a nível pré-graduado como nas diversas especialidades.

Finalmente, uma parceria significa, por definição, que há ganhos para ambas as partes. Portanto, assumindo que assim era nas parcerias público-privadas na saúde (que nenhum estudo conhecido até agora desmentiu), não existe razão para as não englobar na resposta nacional a estas (e outras) necessidades.

O nosso SNS não precisa nem merece premonições fatalistas. Nem beijinhos na barriga. E nem sequer de demissões de Ministros. Precisa, com urgência, de ser “agarrado”, com determinação, visão, ambição e, porque não, com paixão!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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