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Cavaco aparece, Costa agradece

Logo depois do artigo, meses passados de outro também sobre o seu legado, Cavaco deu uma entrevista à CNN. Cavaco teme que país não esteja altura da esmagadora consideração que ele tem por si mesmo, o que é provável. Mas quem ganha com o protagonismo é António Costa. O primeiro-ministro convive bem com uma oposição consolidada à volta de uma figura do passado e centrada em acontecimentos com mais de três décadas

Num artigo publicado no Observador, Cavaco Silva voltou ao seu tema preferido: Cavaco Silva. A grande novidade do texto está no título: “Fazer mais e melhor do que Cavaco Silva”. Haveria muito a dizer sobre quem tem uma tal imagem de si mesmo que oferece o seu nome ao título de um texto. Ao ler o artigo percebe-se o recurso estilístico. O articulista Cavaco Silva está empenhado em inventar uma persona para o primeiro-ministro Cavaco Silva. São mais de dez mil caracteres com o único propósito de reescrever o seu legado como primeiro-ministro, agora apresentado com roupagens dialogantes e de respeito pelo papel da oposição que nunca foram as suas.

Compreende-se a insistência em nos ir presenteando, de forma cada vez mais regular, com artigos sobre o Portugal de sucesso que nos deixou e que nós, em geral, e o PS, em particular, desperdiçámos ou não soubemos dar o devido valor. A cada texto seu a direita levanta-se em ovação, não percebendo que a sua fixação em figuras do passado apenas sublinha a miséria do seu presente.

Dos principais nomes do PSD aos colunistas mais alinhados, todos lhe repetem as linhas de ataque ao governo, os exemplos e as referências. É isso que Cavaco quer mostrar: que ele é que dá a linha, que melhor faz oposição. Confere um atestado de incapacidade política e de menoridade à liderança do seu partido de sempre, o PSD, visto como incapaz de se afirmar longe da esfera protetora da sua figura tutelar.

Só que, para quem não se lembra, os temas do PSD na última campanha foram quase decalcados dos temas elencados por Cavaco Silva num artigo no Expresso: a ultrapassagem económica por alguns países do leste europeu, a suposta asfixia democrática e a necessidade de reformas, estagnadas por anos da geringonça. Estava lá tudo e tudo foi dito e repetido por Rui Rio. O resultado é conhecido e não foi brilhante.

Mas o que é que Costa tem, então, de fazer “mais e melhor do que Cavaco Silva”? Resumindo: tudo. Tem de ser tão dialogante como Cavaco se vê a si próprio, reformista como mais ninguém depois dele, respeitador dos direitos da oposição e do jornalismo ou campeão da concertação social. Para a construção deste “Cavaco novo”, o escriba recorre a uma memória seletiva e à descontextualização do país que eramos em 1985, quando foi primeiro-ministro pela primeira vez.

Quando Cavaco Silva chegou ao poder a maioria das televisões ainda era a preto e branco, o país estava a poucos meses de entrar na CEE e nos supermercados e mercearias só se encontravam praticamente produtos nacionais. É neste país, herdado de 48 anos de uma ditadura isolacionista e do processo conturbado que lhe sucedeu, que Cavaco Silva se orgulha de ter feito uma reforma fiscal como Costa, nos 4 anos da geringonça e nos dois subsequentes, ainda não fez. Diz, com sarcasmo, que tem tempo.

A reforma fiscal que Cavaco levou a cabo foi a eliminação de um sem número de impostos, substituído pelo IRS e IRC, dois impostos que sustentam a fiscalidade dos países comunitários. Não quero memorizar a transformação que o país sofreu, mas tamanha revolução fiscal aconteceria sempre, com ou sem Cavaco, resultando acima de tudo da adesão de Portugal à CEE e das necessidades de um Portugal moderno. Por muita iniquidade que ainda exista na nossa fiscalidade (e existe), é absurdo comparar as atuais necessidades de transformação fiscal com as de meados dos anos 80 do século passado.

Há mais exemplos de reformas, que, lamenta Cavaco Silva, contaram com a oposição do PS. Na área da saúde, diz estar certo que António Costa tem “dificuldade em perceber porque é que o PS se opôs à aprovação, em 1987, da nova lei de gestão hospitalar, e, em 1990, da Lei de Bases da Saúde que abriu à iniciativa privada a prestação de cuidados de saúde e que se manteve em vigor durante 29 anos, resistindo a cinco governos do PS, seguramente por a considerar uma boa lei”. É curiosa esta certeza, quando é dirigida a quem acabou por revogar, com os votos do Bloco e PCP, essa tal Lei de Bases da Saúde. O problema, acrescento eu, não é a oposição do PS em 1990, que Cavaco ainda hoje não entende, mas que o PS tenha convivido tantas décadas com uma lei que apenas tentava contornar o chumbo do Tribunal Constitucional às suas pretensões privatizadoras na área da Saúde.

Todo o registo do artigo é mais ou menos o usado na fiscalidade. O exemplo de diálogo e capacidade de estabelecer pontes com o PS são as revisões constitucionais ou o Tratado de Maastrich, dois domínios (integração europeia e Constituição) onde as pontes entre PSD e PS foram e continuam a ser conseguidas ao longo do tempo. Porque fazem parte de um consenso político entre os dois partidos. Anterior, posterior e indiferente a Cavaco Silva. Não interrompeu esse consenso. Está de parabéns pelo arrojo.

Cavaco Silva, conhecido por não debater diretamente com ninguém a não ser que seja obrigado, diz que, ao contrário do que hoje vê, sempre teve uma relação de “urbanidade e respeito” com os seus opositores. O problema é que o diálogo, a urbanidade e o respeito viviam do silêncio. Cavaco recusava-se a responder aos deputados na Assembleia da República, onde ia para um discurso sobre o Estado da Nação e pouco mais. O mesmo acontecia nas campanhas eleitorais para legislativas, onde, já como primeiro-ministro, se recusava a debater com os restantes líderes partidários.

Para quem viveu esses tempos, ver Cavaco Silva acusar António Costa de “assédio ou asfixia da democracia” só pode ser visto como humor involuntário. Como uma parte dos leitores não tem memória viva desses tempos, talvez seja bom lembrar que o diálogo nos governos citados acabava, quase sempre, com o bastão nas costas de quem discordava de tanta benevolência. Foi assim nos protestos da Ponte 25 de Abril, onde a polícia chegou a disparar, deixando paraplégico um dos manifestantes. Foi assim nas manifestações estudantis contra as propinas. Numa das mais célebres, em frente ao Parlamento, em novembro de 1993, vários estudantes tiveram de receber assistência hospitalar. Lá dentro, no hemiciclo, os deputados do PSD falavam numa “contenção de louvar” da PSP. Foi assim com os “secos e molhados”, onde o diálogo social de Cavaco Silva impedia sindicatos de polícias e mandou a polícia carregar sobre os polícia. A imagem, de tão inusitada, correu a Europa.

Logo depois deste artigo, publicado meses depois de outro em que o seu extraordinário legado também foi tema central, Cavaco Silva deu uma entrevista á CNN, onde sublinhou a sua indisponibilidade geral para aparecer. É preciso recordar a Luís Montenegro que, apesar de ter acabado de chegar á liderança do PSD, isso não quer dizer que o palco da direita lhe pertença.

Se nada disto serve à direita, a quem retira protagonismo e menoriza na sua capacidade de liderança política da oposição, a quem servem os sucessivos artigos de Cavaco Silva? Quando o articulista coloca o seu nome no título do texto que publica não nos deixa grande espaço para a imaginação: ao próprio. Mas o vencedor que interessa, por ser o que está no ativo, é António Costa. O primeiro-ministro convive bem com uma oposição consolidada à volta de uma figura do passado e centrada em acontecimentos com mais de três décadas. O tempo de Cavaco Silva foi tão marcado e marcante para quem o viveu que a sua figura tem a vantagem acrescida, para António Costa, de agregar a esquerda. Já teve esse papel na formação da Geringonça, onde a sua oposição acabou por ser o empurrão que faltava para um acordo inédito no nosso país.

Cavaco Silva vive obcecado com o seu legado. Teme que país não esteja altura da esmagadora consideração que tem por si mesmo, o que é provável, porque há exigências quase impossíveis de acompanhar. Teme que a história não lhe faça justiça, o que se compreende, porque fasquia é tão alta que isso seria impossível. Mas a tentativa de reescrever o seu legado, com tamanha produção memorialista, tem deixado um ponto ausente. Para quem diz que é preciso nascer duas vezes para ser mais sério do que a sua pessoa, Cavaco Silva ainda está para nos dar uma explicação sobre a forma como conviveu com alguns dos piores exemplos de apropriação do Estado pelo aparelho partidário e de enriquecimento muito pouco justificado. Também nisso pode dar lições que o PS ainda não tenha aprendido consigo mesmo. Fica para uma próxima coluna de opinião.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: danieloliveira.lx@gmail.com

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