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Opinião

Relações históricas Rússia-ocidente: olhos nos olhos mas de costas voltadas

É agora claro que a nostalgia histórica de Putin impele-o a procurar recuperar a Rússia imperial, isto à custa da vontade dos povos e cidadãos, e por contraste com o ocidente. Tal como quase sempre na História, as relações de Rússia e ocidente voltaram assim, e de forma dramática, a ser encaradas olhos nos olhos e de costas voltadas

Rússia e ocidente são realidades diferentes que quase sempre se olharam com desconfiança. O ocidente medieval é, genericamente, produto da herança clássica grega e romana, do cristianismo e do elemento germânico. A estes, juntem-se influências mais localizadas, como a muçulmana na Península Ibérica, a Celta na Irlanda, ou a viking na Escandinávia. Mas o ocidente europeu é também produto das evoluções da época contemporânea, como a revolução francesa, o liberalismo politico, a democracia e o estado social.

A Rússia é diferente em quase tudo. Em comum tem o cristianismo - apesar de desde muito cedo separado da igreja de Roma (Cisma ortodoxo, 1054) - a herança clássica por via bizantina, e uma remota origem escandinava que, pelo século X, misturou-se com a eslava. O cruel domínio mongol (séculos XIII a XV) marcou profundamente o carácter russo, apesar de não ter originado miscigenação. Para além do mais, provocou um corte entre os russos do antigo principado de Kiev, que se dividiram entre os que ficaram sobre domínio do invasor, e aqueles que se integraram no reino da Polónia.

Quando no século XV os príncipes de Moscóvia derrotaram os mongóis, não tinham muito para onde olhar. A leste, os montes Urais e uma estepe sem fim, a sudoeste, os turcos otomanos. Em 1453, estes tomaram o império bizantino, a única estrutura política a ocidente com que os russos sentiam afinidades. Depois dos mongóis recuarem de volta para as estepes, a Rússia proclamou-se herdeira do império bizantino mas continuou isolada do mundo.

No início do século XVIII o czar Pedro Romanov decidiu quebrar o isolamento russo e avançar para ocidente. Viajou por algumas das principais potências de então (França, Países Baixos), derrotou os suecos, que controlavam o báltico e norte da Alemanha, e obrigou os boiardos a cortar a barba e vestir-se à ocidental. Sobretudo, fundou uma nova capital, São Petersburgo, completamente virada para ocidente. A Rússia era pois um estado imenso com o centro económico, politico e social na sua extremidade ocidental.

Esta ocidentalização forçada não apagou costumes brutais tanto na corte, como sob uma população praticamente escravizada (servidão). Durante o século XVIII, foi rara a vez em que o trono passou de forma pacífica de pai para filho. Apesar do despotismo russo ser muito diferente do absolutismo ocidental, as práticas politicas de ambos não eram tão contrastantes como no presente. Então, o elemento germânico ganhou peso na corte russa (Catarina II, por exemplo, era de origem alemã), e os czares admiravam os grandes cabos de guerra ocidentais. Pedro III teve Frederico II da Prússia por referência, e Alexandre I admirava Napoleão Bonaparte, isto apesar de o ter combatido.

Durante os séculos XIX e XX, e paradoxalmente, a Rússia foi decisiva na oposição às diferentes tentativas de hegemonia sobre a Europa. Fez parte de coligações contra Napoleão e, já no século XX, integrou as alianças contra a Alemanha nas duas grandes guerras. Estas últimas foram alianças contra natura contra um inimigo comum. Na I guerra mundial, nada ligava as potências liberais e a autocracia russa para além da oposição ao império alemão e, na II guerra mundial, ainda menos ligava o totalitarismo soviético aos aliados ocidentais para além do combate à Alemanha nazi.

O grande contraste político com o ocidente começou porém a acentuar-se a partir de 1815. Após a derrota de Napoleão, a Rússia integrou a Santa Aliança com Prússia e Áustria contra os princípios liberais que se afirmavam a ocidente. A rivalidade com França e Reino Unido foi uma realidade no mediterrâneo oriental, assim como a inimizade com otomanos, que dominavam os povos eslavos de que a Rússia se afirmou protetora. Os estados germânicos foram então os aliados naturais dos russos, isto até que o kaiser decidiu renunciar à aliança entre os impérios alemão e russo. O objetivo de Guilherme II era privilegiar as relações com o espaço anglo saxónico em detrimento do eslavo e fazer uma aliança permanente com o Reino Unido. Era algo que não interessou ao governo de Londres. A imprudência do kaiser foi o principio das alianças circunstanciais da Rússia com França e Reino Unido que se materializaram na primeira metade do século XX. Na I grande guerra, esta terminou com a paz separada de Brest-Litovsk, momento da rendição russa aos alemães. Na II grande guerra, a aliança foi ainda mais interesseira, pois sucedeu a outra entre os regimes totalitários nazi e soviético, que os primeiros traíram.

Após 1945, os sacrifícios e a brutalidade que Estaline impôs ao seu povo tiveram por consequência a emergência de uma esfera de influência soviética. Esta estendeu-se à quase totalidade do leste europeu e impôs um modelo politico em que as liberdades estavam ausentes. Para o ocidente, a URSS permaneceu como um estado hostil até à década de 1980. A implosão da URSS permitiu sonhar com a democratização da Rússia, mas a tentativa de afirmar um modelo liberal foi acompanhada de uma fase tormentosa que descredibilizou o Estado e favoreceu a corrupção.

Ao subir ao poder, Putin recuperou o imaginário imperial, de que a águia de duas cabeças a olhar para ocidente e oriente é elemento simbólico, e enfatizou a nostalgia dos tempos soviéticos. A sua prática política assemelha-se mais à dos czares que à soviética, em que o partido tinha peso efetivo. Putin é um autocrata quase vitalício e que decide sozinho com um poder quase total. É agora claro que a nostalgia histórica de Putin impele-o a procurar recuperar a Rússia imperial, isto à custa da vontade dos povos e cidadãos, e por contraste com o ocidente. Tal como quase sempre na História, as relações de Rússia e ocidente voltaram assim, e de forma dramática, a ser encaradas olhos nos olhos mas de costas voltadas.

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