Nas últimas décadas, a sofisticação e qualificação da sociedade civil deu passos muitos grandes, o que tem contribuído para a sua excelente adaptação aos desafios e às oportunidades, num ambiente aliás muitas vezes adverso. No entanto, a superestrutura política e os quadros dirigentes da administração pública não tiveram uma evolução semelhante
Algumas notícias surgiram que penso serem preocupantes em si mesmas; mas se forem lidas no seu conjunto reforçam a sua gravidade, até porque não seria difícil encontrar e trazer aqui outros exemplos semelhantes.
São elas:
A comprovação de que a repetição de eleições para o círculo da Europa, além de causar custos reputacionais e despesas elevadas que seriam desnecessárias, não provocou nenhum sobressalto no Governo e nos partidos políticos e ninguém surge interessado em encontrar e sancionar os responsáveis;
O facto da Assembleia da República, durante os 6 anos da legislatura dominada pela geringonça e pelo PS, nunca ter sentido necessidade de rever a lei eleitoral para a adaptar à realidade da nova e crescente imigração portuguesa nem para legislar sobre o Estado de Emergência Sanitário;
A aprovação por unanimidade na Assembleia da República, no pacote da legislação anticorrupção, de uma interpretação do regime de impedimentos de juízes que na prática vai bloquear julgamentos por todo o País e que está a ser contestada (com toda a razão) pelas profissões judiciárias;
O ter-se descoberto que – aparentemente – fuzileiros portugueses se terão envolvido em zaragatas à porta de uma discoteca de madrugada e terem agredido com violência, que num caso foi mortal, polícias que não fardados também por ali andavam.
Em minha opinião, tudo isto são sinais de fracasso das instituições, da sua ineficiência, da incapacidade em distinguir o essencial do acessório e da enorme dificuldade por isso em se conseguir criar uma cultura política de Cidadania.
O FRACASSO DAS INSTITUIÇÕES
Uma sociedade moderna e com Cidadania ativa necessita de uma classe política muito qualificada e responsável.
Nas últimas décadas, a sofisticação e qualificação da sociedade civil deu passos muitos grandes, o que tem contribuído para a sua excelente adaptação aos desafios e às oportunidades, num ambiente aliás muitas vezes adverso.
No entanto, a superestrutura política e os quadros dirigentes da administração pública não tiveram uma evolução semelhante. Pelo contrário, tenho ouvido a pessoas qualificadas que sobrevivem no sistema político e/ou na máquina estatal que a degradação da qualidade, da formação e da motivação revelam uma involução no sentido oposto.
Esta realidade (a sociedade a progredir e as chefias da administração pública e do sistema político a regredir) é talvez a principal razão da crescente dessintonia entre eleitores e eleitos e da sensação de que o serviço público não é motivador, o que acarreta custos e preços pesados pois quando é assim os sistemas reproduzem-se em acelerada regressão e involução.
E tudo isso se nota nos casos exemplares que referi a início.
A REPETIÇÃO DAS ELEIÇÕES NA EUROPA
Veja-se o caso da repetição das eleições, que está em curso no círculo da Europa, o qual pode ser declinado da seguinte maneira:
Os legisladores não pensaram bem como funcionaria o sistema de votação de imigrantes e não anteciparam os problemas que eram óbvios;
Também não adaptaram prazos que foram pensados para eleições em Portugal à realidade complexa da distância, o que causa um atraso inadmissível na entrada em funções da nova Assembleia da República e na formação do Governo, e por isso deveria ser evitado, ao menos em situações em que as reclamações e a repetição da votação não influenciam o resultado;
Segundo um dirigente do PS, ouvido hoje pela SIC, nas eleições de 2019 foi detetado o problema e a necessidade de alterar lei, mas “depois veio a pandemia” e a Assembleia da República não conseguia trabalhar...
E repare-se que, dois meses depois dos factos, não há ninguém a ser responsabilizado pela trapalhada, pelos gastos e atrasos que causou e pelos danos à imagem de Portugal que gerou.
No fundo, o sistema político é muito corporativo, não quer culpabilizar ou punir os que no seu interior falham e causam graves danos.
A LEI DO ESTADO DE EMERGÊNCIA SANITÁRIA
Veja-se agora o desinteresse em aprovar a Lei do Estado de Emergência Sanitário, preferindo o Governo e a Assembleia aplicar – muitas vezes sem respeito da Constituição – uma lei de 1986 (ou seja, com mais de 35 anos) que nunca foi pensada para situações como uma pandemia.
Este padrão é recorrente. Não existe no mundo parlamentar e dos partidos, nem sequer no Governo, um sentido de proporção entre o essencial e o acessório e por isso muitíssimas vezes o que seria mais relevante é sacrificado ao tempo desperdiçado em matérias que apenas refletem a espuma dos dias, a pressão de grupos de interesse e a vontade de estar em linha com os movimentos das redes sociais.
Pior do que isso, o funcionamento da Assembleia da República está virado para os “sound bites”, para a confrontação em formas arcaicas, não existindo uma tecnoestrutura de qualidade para o trabalho legislativo.
Por ser assim, se o Governo – como lamentavelmente aconteceu neste caso – não quiser apresentar uma proposta de lei, os grupos parlamentares não estão preparados nem interessados em trabalho complexo e que não dá notícias nas televisões.
A ENTROPIA DOS IMPEDIMENTOS DOS JUÍZES
E muitas vezes os deputados, quando legislam, não ouvem quem sabe, não têm a experiência, o tempo ou a paciência para fazer um trabalho cauteloso e criterioso.
Veja-se o exemplo de alterações legislativas no âmbito da estratégia de luta contra a corrupção, que vão causar forte entropia no funcionamento do sistema judicial.
A partir desta semana, se um juiz teve uma intervenção pontual e episódica na fase de inquérito ou de instrução não poderá estar na audiência de julgamento, o que para pequenas comarcas é paralisante.
E neste caso nem há a desculpa de que ninguém os avisou, visto que o CSM alertou para o problema.
Esperemos que o novo Governo – tema a que provavelmente dedicarei grande atenção daqui a uma semana – possa trabalhar com os grupos parlamentares para evitar este tipo de situações no futuro.
AS FORÇAS ARMADAS E OS DELIQUENTES
O último exemplo: Nuno Melo propôs, na sua campanha para liderar o CDS e em entrevista ao Expresso, um “serviço militar protocolado” que permitisse às Forças Armadas contribuir para a aculturação dos jovens delinquentes.
A ideia merece análise. Só que – parece que para a destruir… – alegadamente um grupo de fuzileiros à porta de uma discoteca envolveu-se numa rixa que terminou em agressões violentas a polícias à paisana (um deles veio a falecer) que terão tentado separar os bandos rivais.
Ou seja, aparentemente as Forças Armadas estarão a falhar como instituição no processo de aculturação dos militares, o que é muito grave. O que em si mesmo dificulta o sucesso da proposta de Nuno Melo.
Vamos então de combates grupais à porta de discotecas para uma guerra a sério, ou seja, diretamente para a Ucrânia.
UCRÂNIA PARTIDA AO MEIO?
Neste momento creio que se justifica o pessimismo que revelei há uma semana em relação à hipótese de um acordo de paz a curto prazo.
Para quem tivesse dúvidas, vejam a resistência, apoiada pelo Governo, na nova Guernica que é Mariupol (onde aliás 81% da população fala sobretudo russo e poucos favorecem a adesão à NATO e à UE), que demonstra o rigor da velha frase “mesmo depois de mortos são precisos quatro para nos tirar de casa”.
Estes dados de Mariupol revelam bem como uma paz genuína é muito improvável.
Sendo assim, a guerra vai continuar provavelmente com acrescida violência.
Se olharmos para os mapas, não é preciso ser militar para concluir que a Rússia quer partir ao meio a Ucrânia, ocupar em grande parte a área de Kiev e com esse domínio impor um acordo de paz que permita criar um Estado tampão, como é já a Bielorrússia, integrando a zona oriental da Ucrânia onde os russófilos estão mais concentrados.
O problema é que esse tipo de acordo poderá ser rejeitado pela maioria dos ucranianos. E Zellenck, sensatamente, exige que o acordo de paz seja referendado, pois sem isso levará à queda de quem hoje governa a Ucrânia e provavelmente ao caos no que reste deste que é ainda o segundo maior país europeu, apena atrás da Rússia.
O ELOGIO
Na próxima 5ª feira passará a haver mais dias posteriores a 25 de Abril de 1974 do que dias teve a Ditadura.
Merecem elogio o que conseguiram restituir-nos a Liberdade e os que a reconquistaram e a consolidaram em 25 de novembro de 1975, após os desafios da esquerda totalitária.
Mas não está certo dizer que passámos agora a viver mais tempo em Democracia do que em Ditadura, pois até finais de 1975 a Democracia não existiu durante a maior parte do tempo, porque a Liberdade e o Estado de Direito não foram sistemicamente respeitados.
LER É O MELHOR REMÉDIO
Maria Stepanova, uma grande e premiada poetisa russa, escreveu a partir de Moscovo, um notável texto para o Financial Times do fim-de-semana, intitulado “The War of Putin’s Imagination”.
É uma obra literária, um libelo contra a guerra feita, uma análise muito interessante sobre uma guerra do Século XX que irrompeu no nosso tempo. E um ato de grande coragem, que prova que a Poesia liberta e a Liberdade é poética.
Que alguém – talvez o Expresso - republique o texto traduzido para que mais o possam ler.
A PERGUNTA SEMRESPOSTA
Na passada semana fiz três perguntas ao Bloco de Esquerda, por causa do despedimento coletivo que tiveram de fazer devido à redução enorme das suas receitas.
As perguntas eram as seguintes:
O BE vai admitir publicamente que despedimentos podem ser justificados?
Vai compensar todos os despedidos, não pactuando com “falsos recibos verdes”?
Vai dar 30 dias indemnização por cada ano ou aplicar a lei da troika?
Em nome da transparência necessária, ainda mais se vier de quem tanto a apregoa, deve responder. E há quem me tenha dito que o BE o vai fazer. Se assim for, a Cidadania fica grata.
A LOUCURA MANSA
Um militante de extrema-direita, Mário Machado, que já foi condenado por atos de violência e penso que pagou com prisão o preço à comunidade, tem por certo o direito a reorganizar a sua vida em paz.
No entanto, é agora arguido por alegada posse ilegal de armas. Não conheço evidentemente o caso.
Uma Juíza de Instrução dispensou-o da obrigação de apresentações quinzenais e permitiu que viaje para a Ucrânia, supostamente para “prestar ajuda humanitária e, se necessário, combater ao lado das tropas ucranianas”, seguramente que não podendo controlar se ele vai ou não pegar em armas ilegais.
Eu sei que a Legião Estrangeira era – não sei se ainda é – destino de alguns indivíduos com graves problemas com a Justiça, que aí encontrariam uma razão para a vida e por vezes a sua regeneração.
O que desconhecia, e não imaginava, era que neste pequeno paraíso à beira mar plantado essa prática seria favorecida por uma magistrada no século XXI. Mas também quem imaginaria a guerra de invasão da Ucrânia?