Opinião

Forças Armadas: É tempo de parar para refletir

Forças Armadas: É tempo de parar para refletir

Paulo Sande

Professor convidado de Ciência Política da Universidade Católica, Instituto de Estudos Políticos

Obedecer sim, sempre, desde que as ordens sejam legítimas. Mas um militar pode e deve opinar sobre matéria da respetiva competência – só que nem sempre é aconselhável, como se viu pelas repercussões da reforma do comando superior das Forças Armadas, considera Paulo Sande, professor convidado de Ciência Política da Universidade Católica

DEPRESSA E BEM…

Quando eu era pequeno e o Mundo lá fora parecia assustador e complexo, a segurança e conforto chegavam-me nas palavras do meu pai, que me falava de um país antigo e honrado, cujo direito a existir fora conquistado a pulso, contra ventos, marés, mostrengos e velhos do Restelo na praia velha a perorar.
Um dos esteios desse país construído a golpe – paraíso plantado à beira mar – eram as suas Forças Armadas (FFAA), velha instituição nova, servidas por tantos jovens e menos jovens ao longo de gerações, dos tempos antigos da luta pela independência aos dias sangrentos das guerras de África. Mais tarde, elas fizeram Abril e trouxeram a liberdade, que defenderam em Novembro contra as Forças adversas da repressão e do Mal.

E o meu pai explicava-me a importância de tratar as FFAA com respeito, de lhes dar o lustro devido a quem tantos e tão leais serviços prestou ao país.

Vem isto a propósito da apressada reforma das FFAA, formalmente iniciada há menos de um ano e que mais pareceu uma corrida contra o tempo do que um esforço sério e profundo de revitalização de um setor em clara fase de pré-ruptura.
E o que se pedia, num país de parcos recursos e crescimento anémico, era que essa reforma, obviamente necessária, civicamente exigível, se fizesse após um debate público amplo e participado; que resultasse de uma sólida e reflectida unidade nacional (que não união nacional), com uma contribuição robusta dos próprios militares; que tratasse daquilo que verdadeiramente interessa e de que depende a revitalização do sistema de forças e da capacidade de acção das FFAA; e que fosse um sinal de coesão interna, de reconciliação dos portugueses com a instituição militar, de esperança num futuro em que as FFAA voltassem a ser o esteio que sossega as crianças pequenas.

Foi todo o seu contrário. Em poucos dias, entre fevereiro e março de 2021, anunciou o Ministro de Defesa Nacional (MDN) a intenção de apresentar uma lei para reformar as estruturas superiores das FFAA - e apresentou-a; aos chefes de Estado Maior dos três ramos (Armada, Exército e Força Aérea) pediu-se que se pronunciassem à velocidade da luz (dizem-me que em 6 horas) - só em junho e já em sede de especialidade foram ouvidos na comissão de defesa nacional da Assembleia da República (AR); convocaram-se (dizem-me que em 8 dias) os Conselhos Superior Militar, da Defesa Nacional e de Estado, para opinar; a 25 de junho, votaram-se no Parlamento as alterações à Lei de Defesa Nacional e à Lei Orgânica de Bases da Organização das Forças Armadas, aprovadas por PS, PSD e CDS.

Finalmente, a 2 de agosto – depois de mais de um mês de reflexão – o Presidente da República (PR), Comandante Supremo das Forças Armadas, promulgou as Leis.

SEM TEMPO NEM PARTICIPAÇÃO

Rápido mais rápido não há.

Pelo meio, ficou sem resposta a preocupação dos 28 signatários da carta pública dirigida aos responsáveis da Defesa Nacional, entre os quais 28 em 29 antigos Chefes do Estado-Maior dos ramos e chefes de Estado-Maior General das Forças Armadas (CEMGFA), um dos quais também antigo Presidente da República (Ramalho Eanes). Nem os ouviram, como deviam, o MDN ou a AR.

E de golpe foi igualmente ignorado o trabalho do GREI, Grupo de Reflexão Estratégica Independente constituído por antigos oficiais generais, que desde 2018 estuda os caminhos para a reforma das FFAA – e não são os agora trilhados, como se pode aliás ler num livro publicado recentemente pelo GREI e apresentado em Lisboa em meados de novembro. Pelo caminho caíram, ainda, as vozes sensatas e preocupadas de tantos comentadores, como Viriato Soromenho-Marques, para quem a subalternização dos chefes militares dos ramos é um “erro de gramática militar que manifesta uma conceção paupérrima da missão vital das FFAA e da responsabilidade das suas chefias, bem como uma conceção crispada do equilíbrio entre obediência funcional e liberdade de expressão”.

Obedecer sim, sempre, desde que as ordens sejam legítimas. Mas um militar pode e deve opinar sobre matéria da respetiva competência – só que nem sempre é aconselhável, como se viu pelas repercussões deste caso. E pelo caminho parecem ter ficado o bom senso e a ponderação.

Convém recordar que, no essencial – razão principal da discordância dos actuais chefes dos ramos e antigos chefes militares –, a reforma visa a transferência exaustiva de competências dos chefes de Estado-maior dos três ramos para o CEMGFA, designadamente do comando operacional conjunto das respetivas forças. Na prática, os chefes militares deixam de despachar diretamente com o ministro as questões militares (incluindo planeamento, direção e controlo da execução da estratégia de defesa militar e capacidades militares), devendo sempre passar pelo CEMGFA.

Quando, a 2 de agosto, o Presidente da República promulgou as leis, fê-lo com a manifesta incomodidade de quem sabia estar-se perante um simulacro de reforma que, mais do que unir, dividia a sociedade e as próprias FFAA, sem vantagem visível. Deixou claro, contudo, que o fazia devido (sobretudo) à maioria parlamentar que as aprovou e também por haver margem de apreciação dos decretos-lei que, no futuro, lhes dariam execução. Ficou claro, sobretudo, que os iria analisar à lupa.

Mas para isso ser bem feito, ouvindo todos os interessados, os autores da carta dos 28, o GREI, a sociedade civil, era preciso que pelo menos esses decretos regulamentares fossem preparados com tempo. Não foi o caso, pois logo em meados de novembro, aprovados por um governo enfraquecido pelo anúncio da dissolução da AR, o Presidente da República os recebeu para promulgação.

A NUVEM E A CHUVA

Quando chega a nuvem, a chuva não vem longe.

Promulgadas as alterações às leis fundamentais das FFAA, o governo pareceu desse facto retirar como ilação o direito de decidir o que lhe aprouvesse sobre elas. E no dia 28 de setembro, terminava Gouveia e Melo o seu glorificado mandato na frente pandémica, logo o MDN chamou o chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA) para o demitir. Não fora a intervenção decisiva do PR e teria sido punido um contestatário – o CEMA, Almirante Mendes Calado – e instrumentalizado Gouveia e Melo (para usar a expressão de Viriato Soromenho-Marques, em artigo de 2 de outubro).

Não foi só isso, ainda que se o fosse já seria mais do que suficiente.

Também o nome indicado pela Marinha para o cargo de Comandante Naval foi rejeitado pelo MDN, ouvido o CEMGFA. Será este já um caso de interpretação maximalista das novas leis, que, sem prejuízo de considerações sobre a bondade da decisão, faz com que a Marinha de Guerra portuguesa esteja sem Comandante Naval há mais de quatro meses, o que – dizem-me fontes da Arma – é uma situação inédita e grave?
Em causa estão, em todo este apressado processo, o prestígio das instituições, a confiança de militares e civis nas lideranças, o conhecimento cabal de quem prepara um processo desta envergadura sobre o sector a reformar, a incompreensão sobre os padrões e princípios militares, o respeito entre todos, o moral, a expectativa de quantos esperam ansiosamente por uma verdadeira reforma das FFAA, o valor efetivo, o respeito e reconhecimento que merece a condição militar, a consideração devida a todos quantos se manifestaram, entre os quais castrenses ilustres e antigos Presidentes da República, todos atropelados pela velocidade excessiva e inconsiderada do processo.

As Forças Armadas de um país, sobretudo de um antigo país como Portugal, pertencem em primeiro lugar aos seus cidadãos. E a mais ninguém.

Desde o primeiro dia que, a respeito da reforma das FFAA, Marcelo Rebelo de Sousa, presidente da República e seu Comandante Supremo, salientou a importância do seu sucesso, conciliando “arrojo e bom senso, assertividade e participação, reforço institucional e plasticidade pessoal”.

Ora arrojo houve, bom senso pouco; assertividade, sem dúvida, participação escassa; reforço institucional nenhum; e alguns dos interlocutores ou não entenderam o meio em que navegavam ou não foram capazes de antecipar a chuva à vista da nuvem.
Não posso senão desejar que o bom senso volte a imperar e que, num período pré-eleitoral, com o Parlamento dissolvido, seja dado a este processo e à concretização das medidas aprovadas o tempo e respiração necessários à participação, ao reforço institucional e a uma verdadeira, justa e eficaz reforma das nossas Forças Armadas.

Para que às crianças de hoje qualquer pai possa dar a segurança que o meu me deu.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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