Opinião

Rui Rio e o terramoto que se segue

Rui Rio e o terramoto que se segue

Carmo Afonso

Advogada

Com Rui Rio e António Costa um acordo que viabilize a governação do país é possível. São dois dinossauros que têm a experiência de ter regressado à vida depois de considerados extintos e esses renascimentos tornaram-nos da mesma espécie. Isto pode representar um terramoto político maior que o de 2015. Se existe uma possibilidade de entendimento - em que este PSD assegura que perdendo as eleições viabiliza a governação de António Costa e em que Costa aceita esse “apoio” – então, prestem atenção: mudou tudo

Sábado à noite os militantes do PSD surpreenderam o país e uma parte significativa do aparelho e ainda alguns notáveis do partido, onde se inclui o próprio Presidente da República. Quando acontece uma surpresa na vida política – e mesmo que seja uma desagradável – é sempre um momento de vitalidade. Uma espécie de “Calma, que está aqui gente”. As máquinas partidárias, as empresas de sondagens, os comentadores e analistas políticos, devem ser abanados. A democracia não é previsível e nem tem de ser. Quem vota, decide.

Há noites eleitorais que são terramotos e Rui Rio já tinha sido protagonista de uma, nas eleições autárquicas de 2001, quando conquistou a Câmara Municipal do Porto. Não foi a única vez que surpreendeu. Rui Rio é feito de um material propício a reviravoltas. É teimoso, pouco flexível: ou vai ou racha. E tem ido.

No sábado à noite ganhou uma ala do partido que representa o que de melhor existe no Partido Social Democrata: a não sujeição ao aparelho, e aí ganha algum sentido a expressão usada por Rui Rio: “militantes livres”, a rejeição da artilharia liberal de Pedro Passos Coelho, a capacidade de afirmar uma vontade contrária ao que parecia mais que certo e, mais importante, a face mais social democrata e popular no sentido em que se pode recordar o PPD, partido popular democrático.

Pode também ter contribuído uma análise estratégica, de alguns militantes que até apoiavam Paulo Rangel, de qual seria o candidato com mais adesão junto do eleitorado e fora daquele sufrágio interno. Parecia evidente – e uma sondagem tê-lo-á confirmado – que a popularidade de Paulo Rangel no partido não correspondia à que alcançaria no eleitorado. Eleger um líder também significa escolher aquele que conseguirá melhores resultados em eleições. O peso que esta análise teve na vitória de Rui Rio já não tem a ver com o melhor do PSD, ou tão pouco com o seu pior, é puro pragmatismo. Os militantes do PSD e mesmo parte do aparelho (alguns podem ter mudado o seu sentido de voto com este dado) querem que o PSD chegue ao poder. Não existe aqui virtude nem pecado.

A vitória de Rui Rio foi a derrota de Paulo Rangel. Mas foi também a derrota de Pedro Passos Coelho, a de Marcelo Rebelo de Sousa, a dos grandes entusiastas da Convenção do MEL - a convenção que tentou desbravar caminho para um entendimento à direita, um entendimento que incluía o partido embuste – e, de uma forma muito alargada, a de um aparelho do partido que não tem melhor projeto que fazer renascer a herança de Pedro Passos Coelho e engolir, se preciso for, André Ventura. É difícil não ver um lado positivo neste parágrafo.

Recordar aqui o discurso de Rui Rio no encerramento do MEL: "Ainda não tinha entrado na sala, olhei para o ecrã e sosseguei porque não dizia ali congresso das direitas. Se dissesse eu não poderia entrar, teria provavelmente sido barrado logo à entrada". Afirmou ainda que o PSD não era um partido de direita. Estas afirmações não lhe deram grandes aplausos. Para quem assistiu à convenção ficou evidente uma clivagem entre o PSD de Rui Rio e aquele que se regozijava com a presença de Pedro Passos Coelho e de discursos exacerbados à direita e, já agora, ficou evidente que, ali, Rui Rio estava em minoria.

Sucede que foi com Rui Rio que se encetou a primeira versão de entendimento com a extrema-direita e essa é uma memória que não deverá ser apagada. Os Açores continuam a tremer. Saberá o próprio em que compartimento da sua história guarda essa responsabilidade. Talvez a sua teimosia não lhe permita colocá-la no lugar certo. E sucede também que esta não é uma página da história de Rui Rio que este tenha protagonizado naquela idade em que, segundo Luís Filipe Vieira (na investigação dos jornalistas Pedro Coelho e Filipe Teles), se furtam camiões.

Recordo aqui a construção da barragem do Alqueva. Vem a propósito. Na altura da sua construção, e a tempo de a ter evitado nos termos em que foi realizada, os geólogos alertaram para um facto de que pouco se ouve falar: a barragem foi construída sobre uma falha sísmica. Este conhecimento não determinou qualquer alteração ao projeto mas apenas o gasto de muitos milhões “extra orçamento” porque interceptaram a falha em profundidade e – acreditem que é verdade – encheram-na de betão. O betão não resolveu nada. A segurança da barragem, e a das povoações adjacentes, está em risco caso a falha mexa como é da sua natureza. Encher de betão uma falha sísmica é um bom paradigma do que não deve ser feito numa obra pública e da inconsciência adolescente de quem toma decisões a contar que não aconteça nenhum azar. Tratou-se de um procedimento que teve como único “benefício” o avanço da construção da barragem. Isto porque se preencheu um espaço oco que teria abatido. Mas a dinâmica da falha, e o seu efetivo perigo, estão intactos. Corrijo: foram ampliados. Agora o potencial de danos de um terramoto aumentou exponencialmente.

Assim é o PSD de Rui Rio. Uma instituição controversa e assente numa falha. Chegar ao poder nos Açores foi uma forma de preservar a liderança de Rui Rio. Mas tratou-se de uma inauguração sem volta. Não existe uma segunda oportunidade para o que só se pode perder uma vez. Há princípios que não se podem perder.

Sá Carneiro caracterizava o seu partido como sendo de esquerda não marxista, o que seria, certamente, um exagero da sua parte, mas é certo que as bases da social-democracia incluem a intervenção no mercado e a correção de desigualdades sociais. Tempos que já lá vão. É uma ideia muito batida mas por ser verdadeira é bom que seja dita: os principais partidos políticos portugueses deslocaram-se para a direita. O mercado venceu.

A disputa à liderança do PSD foi muito acompanhada pela esquerda. E aqui começa outra parte interessante. Porquê? Porque no tabuleiro da política atual, mudar a posição de uma peça implica mudar a jogada de todas as outras e esse fenómeno – que atinge com evidência os partidos de direita – afecta também a estratégia dos partidos de esquerda. Podem até dizer que não. Só que é um facto. Neste caso nem é um fenómeno discreto apenas ao alcance de finos observadores. É de caras.

Vejamos: à esquerda mais à esquerda convinha a vitória de Rangel. Notar aqui que as conveniências não determinam a vontade política ou que, pelo menos, não deveriam fazê-lo. Seria feio que esta esquerda preferisse um PSD na linha de Passos Coelho em nome da sua estratégia. E porque convinha a vitória de Rangel? Porque com Rangel o PSD inclinar-se-ia para a direita, a mais radical também, em contornos tais que um entendimento de governação com o Partido Socialista não seria uma possibilidade. Ou seja, estes partidos - cuja falta de entendimento com o atual governo nos trouxe a um cenário de eleições - podem ter-se colocado numa situação em que já não serão precisos e em que as suas propostas, e eram boas propostas, vão para uma gaveta ou mesmo para um cesto.

Com Rui Rio e António Costa, um acordo que viabilize a governação do país é possível. São dois dinossauros que têm a experiência de ter regressado à vida depois de considerados extintos. E, nos dois casos, imediatamente a seguir. Costa podia ter caído, e sem uma boa desculpa para tamanho insucesso, em 2015. Rui Rio correu as ruas da amargura política ainda este ano, tendo a vitória de Carlos Moedas em Lisboa representado um balão de oxigénio vindo de onde não havia mais. Estes renascimentos tornaram-nos da mesma espécie.

Ambos foram transparentes na admissão da possibilidade de um entendimento pós-eleitoral. Isto pode representar um terramoto político maior que o de 2015, quando um partido que não ganhou as eleições conseguiu formar governo. Se existe esta possibilidade de entendimento - em que este PSD assegura que perdendo as eleições viabiliza a governação de António Costa e em que Costa aceita esse “apoio” – então, prestem atenção: mudou tudo.

Esta alteração no discurso de António Costa, e a vitória de Rui Rio no sábado à noite, obrigam o país a ir para dentro e a refazer as contas.

A esquerda, do Bloco e do PCP, deixou de ser precisa pelo Partido Socialista para formar soluções governativas ou para viabilizar orçamentos de Estado. Isto se o partido socialista ganhar, como é previsível, as eleições. Temos aprendido que o previsível vale muito pouco. Mas, se for o PSD a ganhar, o futuro será um abalo ainda maior.

Não está apenas em causa – nesta parte – o perigo iminente para o Bloco, para o PCP e para a ala mais à esquerda do PS (sim, ela existe). Estão em causa as lutas que estes partidos têm travado, a defesa dos interesses dos trabalhadores, as políticas sociais, a defesa do Serviço Nacional de Saúde, etc. É que por muito bons resultados que os partidos mais à esquerda venham a obter – e falo aqui de boas representações parlamentares – as políticas implementam-se chegando à governação ou tendo poder negocial junto de quem governa. A eficácia da luta vai voltar a corresponder à dos assentos na oposição, à da contestação social, à das idas para a rua. Dá melhores imagens que resultados. O apelo ao voto desta esquerda passa a ser contra a possibilidade de um bloco central. A sua participação na geringonça, no que diz respeito ao trajeto dos próprios partidos, pode ficar para a história como um erro. A aposta de ir a eleições buscar poder negocial, se foi o caso, correu mal.

A António Costa tudo parece correr de feição, mas também a Fernando Medina parecia e, até sábado, a Paulo Rangel. Estar confiante é uma atitude apreciável mas, tal como o betão, não evita nada.

Espera-se, da parte do PS, um apelo ao voto útil. Às razões que serão invocadas junta-se agora uma nova: só uma maioria absoluta dispensa a necessidade desta espécie de entendimento com o PSD. Cuidado. Seria um discurso muito pouco à esquerda e um eleitorado, que se considera de esquerda, pode não se prestar a tanto.

A esquerda não quis, ou não conseguiu, entender-se para viabilizar um Orçamento de Estado. Em janeiro, cada um votará de acordo com o julgamento que já tinha feito quanto à atribuição de responsabilidades pela atual situação: alguma esquerda dirá que esta é a demonstração de que o PS nunca quis acordo nenhum e outra dirá que se não se pode contar com o PCP e o Bloco para nada e faz bem o PS em ter estratégias de estabilidade alternativas. Só que nada disto ainda importa. Agora é preciso encontrar caminho, estrada para andar, no que aí vem.

Vivemos tempos interessantes. Não é uma catástrofe; faz mesmo parte da dinâmica dos partidos e do sistema democrático. Na verdade, a noite de sábado podia ter corrido pior. Mas é mais fácil apreciar o interesse dos tempos quando não se vive do ordenado mínimo nacional. Lembro-me aqui de uma cena de um filme italiano, cujo nome esqueci: um rapaz tentava convencer a namorada a fugir com ele. Ela dizia que não. Ele argumentava que até os ricos fugiam por amor. Ela respondeu revoltada: “Sì, ma i ricchi scappano in macchina.”

A rapariga tinha razão; a pobreza muda a experiência. Algumas pessoas vivem uma vida à parte e fala-se delas como números, percentagens infelizes. Não será este o enquadramento em que passarão a estar mais defendidas. Pelo contrário, abriram-se portas para um grande recuo e agora, como quando rebenta a conduta de uma barragem, não há quem as consiga voltar a fechar. Esta parte deve ficar clara e assente: dos resultados destas eleições nunca virá uma boa notícia para os prejudicados nas desigualdades sociais, para a maioria dos trabalhadores, para os pensionistas. Não haverá nenhuma força política a negociar/tentar fazer passar aquilo que não foi aprovado (e que os beneficiava), esses temas saíram de cima da mesa.

Deixar a parte boa para o fim: o Chega. Pode dar-se o caso de o partido crescer significativamente nas próximas eleições (e outra de fundo que dita que blocos centrais fazem crescer a extrema-direita) mas a sua participação numa qualquer solução governativa está mais longe. Isto significa que, na campanha eleitoral que se avizinha, não terá relevância discutir qual o voto mais antifascista. O Chega deixou de estar no olho do furacão. O amor não move montanhas, mas os terramotos sim. Combater o fascismo – o que nunca deveria ser feito com um voto em eleições democráticas – não será uma das condicionantes de quem vai votar.

Assim sendo, já se fazia uma pausa na banalização do fascismo por parte da comunicação social. Uma pandemia de cada vez.

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