Opinião

Violência obstétrica: oportunidade para o humanismo na Saúde?

Estou convencida que muitas mulheres não têm mais filhos porque tiveram uma experiência traumática no parto e pós-parto. Querem aumentar a taxa de natalidade em Portugal? Este é um assunto para não menosprezar. Um artigo de opinião da mestre em Teologia Julie Machado

Violência obstétrica: oportunidade para o humanismo na Saúde?

Julie Machado

Mestre em Teologia, luso-americana

Formações e movimentos de métodos de parto mais “alternativos” têm vindo a aumentar exponencialmente em Portugal na última década. Recentemente tornou-se foco das notícias, pois a Ordem dos Médicos respondeu no dia 26 de julho de 2021 a várias manifestações. Afirmou preferir o termo “maus tratos” a “violência”, referiu a diminuição drástica de mortalidade perinatal e materna desde 1970 e apontou aspetos positivos dos hospitais obstétricos, como por exemplo urgências de 24 horas e atividades de formação. Deu a entender que não compete à população geral analisar os indicadores de saúde obstétricos, mas sim às direções clínicas, à DGS, ERS e ACSS. E deu ainda alguns conselhos para as grávidas e famílias se informarem “junto de fontes credíveis, sem dar ouvidos a fontes manipuladoras, confiar nos profissionais de saúde.”

Uma resposta algo defensiva, pareceu-me. Aliás, parece haver cada vez mais uma trincheira na saúde obstétrica entre os “profissionais de saúde” e estas entidades competentes versus “formadores” de visões mais alternativas de parto.

Tal como a maior parte dos mamíferos não podem parir quando se sentem ameaçados ou em perigo, o parto da mulher também não ocorre com excesso de adrenalina. Tal como muitos mamíferos procuram um sítio isolado, escuro e calmo para parir, a maior parte dos partos das mulheres iniciam-se ou acontecem de noite. Quanto mais quantidade da hormona oxitocina houver no corpo da mulher, melhor se desenrolará o parto. Esta hormona é muitas vezes administrada intravenosamente numa indução, mas está presente num parto que se inicia naturalmente sem indução. Quanto mais a mulher se sentir calma, não ameaçada e até com prazer, mais oxitocina terá e melhor correrá o parto.

Há evidência de que quanto mais a mulher se sente respeitada e em controlo das suas opções, melhor se sente posteriormente sobre a experiência que teve de parto. Quer cesariana ou não? Quer epidural ou não? Quer indução ou não? Há um equilíbrio entre a saúde do bebé e a saúde da mulher no qual a opinião da mãe deveria ser mais valorizada. Em geral os “profissionais de saúde” e os hospitais em Portugal têm como objetivo principal a saúde do bebé. Qualquer ameaça ao bem-estar fetal e é lícito fazer seja o que for à mulher, incluindo decidir, talvez precipitadamente, fazer cesariana. No outro lado da balança está o bem-estar da mulher, que o que é feito ao seu corpo durante o parto, e se não for do seu agrado pode ser prejudicial para a sua saúde física na recuperação e na sua fertilidade para ter mais filhos de futuro, como o caso da cesariana, por exemplo. Pode também ser prejudicial para a sua saúde mental e emocional.

“Na verdade, estudos indicam que mulheres que se sentem melhor sobre a sua experiência de parto:

- Sentem uma ligação mais próxima com o bebé e com o parceiro

- Têm menos depressão pós-parto

- Têm mais probabilidade de ter experiências de amamentação com sucesso."

(Traduzido do primeiro capítulo do livro Deliver! A concise guide to helping the woman you love through labor escrito por Julie Dubrouillet e Simon Firth)

E estou convencida que a experiência de parto também influencia na abertura da mulher a ter mais filhos no futuro.

O parto é uma experiência de limite, de dor, de confronto com a extrema vulnerabilidade e, por vezes, com a possibilidade de morte. Nenhum hospital pode “domesticar” a crueza e dureza do parto, só pode garantir mais segurança para alguns casos minoritários em que o bebé ou a mãe podem correr perigo. Assim sendo, não será de fazer tudo ao nosso alcance para suavizar a experiência do parto para a mulher? Para que ela se sinta, o mais possível, respeitada, dignificada e em controlo das suas opções?

Só me lembro do alívio que senti no meu primeiro parto eutócico (após cesariana) quando, na altura expulsiva, gritei para a enfermeira, “não me corte!” e ela respondeu com a segurança que eu precisava naquele momento: “Nós aqui não fazemos isso.” Que situação mais vulnerável pode haver neste mundo? Esta enfermeira demonstrou imenso respeito, num hospital público - Maternidade Alfredo da Costa - e isso ficou registado no livro de elogios.

Nem todos os casos são assim e não é difícil de perceber que as mulheres não se sintam em controlo das suas opções, nem respeitadas. Começa logo pelas opções que se tem em termos financeiros para escolher onde ter o parto. Fala-se muito mal de não haver sistema de saúde público nos Estados Unidos como há em Portugal, mas o sistema lá está montado para a pessoa ter mais opções. De acordo com o seguro, é possível escolher o tipo de hospital, médico, um centro de partos mais natural ou um parto domiciliar. Comparando com esta realidade, as opções em Portugal são mais limitadas.

Entre os hospitais públicos, há alguns um pouco diferentes, mas em geral todos têm práticas e condições muito parecidas. Há pessoas que aparecem com “planos de parto”, mas qual será a consequência se não for respeitado? Não deveria a vontade da parturiente ser mais valorizada?

Há um paternalismo muito enraizado na saúde em Portugal. Desde que se entra para a secretaria, e aquela secretária nunca ouviu falar de “serviço ao cliente”, pois realmente não há serviço nem clientes, e é preciso pedir desculpa quase por tirar uma senha e por fazer uma pergunta. Há um autoritarismo que começa logo com a secretária que “manda” nas consultas, nos horários, nas perguntas, nas senhas, e às vezes até nos médicos. Eles “é que sabem”. Os pacientes caladinhos e à espera.

Um paternalismo vai desde as consultas, às “urgências” com os partos, e os internamentos, em que os profissionais de saúde se refugiam por detrás dos seus altos estudos e talvez por terem sido só avaliados pelas suas notas em ciência e técnica, esquecem-se que há algo mais necessário para servir alguém doente ou em estado de perfeita saúde (não intervir, só vigiar), como é o caso da grávida e parturiente.

Nem o início, nem o fim da vida precisariam de ser sempre institucionalizados, hospitalizados, higienizados e paternalizados. Para saber esperar o parto e saber esperar a morte, pois os extremos tocam-se, é preciso muita paciência, mas também técnica, e humanidade. Reconhecermos isto talvez seja uma oportunidade para um maior humanismo na Saúde.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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