Existe um desporto extremamente intrigante: o Curling. É uma modalidade que merece, sem margem para dúvidas, que na sua caracterização seja usado um advérbio de modo seguido de um adjetivo. Os factos: os jogadores varrem fervorosamente o piso de gelo, deve chamar-se pista, de forma a retirar atrito, à deslocação da pedra de granito no gelo, e a desenhar uma curva (que dá nome à modalidade) encaminhando o deslize dessa pedra para o exato sítio pretendido. Essa frenética operação de varredura e esfrega pode fazer atingir o ponto de fusão no gelo, o que irá diminuir a velocidade de deslocação da pedra. Tem a sua lógica. Mais, tem ciência, tem exercício, tem habilidade mas continua a ser misterioso; porque se lembraram de um jogo assim e de que forma alguém fica tão exímio a varrer gelo? Nenhuma desconsideração aqui pela modalidade. O oposto: quando conhecer um profissional do Curling terei muitas perguntas para lhe fazer.
Nos últimos dias andámos a observar, uns com mais atenção que outros, as movimentações para se chegar a um consenso que viabilizasse o Orçamento do Estado. A necessidade de decifrar cada intervenção dos dirigentes partidários foi absoluta. Sabe-se que, num processo de negociação, existem bastidores e existe a frente de trabalho. Assistimos à parte da frente de trabalho – na verdade a uma pequena parte – e a nada do que se passa nos bastidores. É nos bastidores que se diz: “Ele cedeu ali mas eu teria ido mais longe”. É nos bastidores que saberíamos quantas propostas do Bloco teria o Governo de incluir no orçamento de forma a conseguir a sua viabilização. Seria nos bastidores que conheceríamos qual é o limite de cada uma das forças políticas envolvidas – PS, PCP e Bloco – para que tivéssemos um orçamento de estado aprovado.
Num mundo ideal esta informação viria para fora e numas horas cada um de nós conseguiria cruzar os dados e teria previsto se era ou não possível um entendimento.
Sucede que não vivemos num mundo ideal e sucede que os processos negociais são vivos no sentido em que conseguem arrancar uma pessoa (ou um grupo delas) da posição em que estava inicialmente e dos limites que tinha estabelecido. Esta última parte não é má notícia. É essa elasticidade, e imprevisibilidade, que, para já, nos afasta das máquinas, que nos torna mais interessantes que elas e os únicos capazes de fazer um verdadeiro processo negocial.
Quais são as características de um grande negociador? Diria que a capacidade de fechar um acordo vem em primeiro lugar. Mas deve fechar um acordo sem ceder no núcleo das condições que integram a sua vontade ou que caracterizam o seu mandato. Fechar sem isto é como perder. Deve também conseguir ir ao encontro das condições da outra parte e sobretudo estar absolutamente disponível para a criação de uma nova fórmula que integre as duas vontades, os dois cadernos de encargos.
E se as posições forem inconciliáveis?
Quando são inconciliáveis o processo é curto, a menos que as pessoas a quem foi atribuída a missão de negociar não tenham a experiência ou a transparência para o reconhecer. Quando estamos perante uma negociação, levada a cabo por quem as costuma fazer, que tem episódios, avanços e recuos, é quase seguro afirmar que o entendimento é possível.
Pode ter acontecido, nesta negociação, algo de diferente: que os três envolvidos soubessem de antemão que não iriam chegar a acordo nenhum e que apenas tenham dado os normais passos negociais para não frustrarem – e com uma onda de choque – todos os que tinham sido adeptos da geringonça e que ainda acreditavam num milagre. O mesmo que fazem os casais desfeitos que têm filhos a torcer pelo seu entendimento: terapias e conversas que nunca poderão chegar a lado nenhum. Mostram que tentaram, pedem a bênção para ir cada um à sua vida e ainda tentam culpar o outro pelo que não correu bem.
No fundo poderão ter andado a varrer o gelo de forma a manter a pedra no ponto de partida. Curling for losers. Não saberemos.
A nossa parte como eleitores, simpatizantes ou até militantes destes partidos: podemos acreditar cegamente na versão contada pelos dirigentes – também aqui um paralelo com os filhos que apoiam um dos progenitores e que têm a certeza absoluta que o outro é que teve toda a culpa do infortúnio familiar – ou pôr em causa todas as narrativas. Afinal qual é mesmo a probabilidade de existir um partido malvado que finge que quer um acordo mas que não quer coisa nenhuma mas o outro sim é que queria e que tentou tanto mas que não conseguiu?
Adiante. Não quiseram ou não conseguiram chegar a acordo e, aqui, venha o diabo e escolha qual a pior razão. É certo que, quando nos consideramos santos, vemos o diabo a vir aí.
O que se passou na negociação do Orçamento de Estado foi um jogo de póquer. Poucos perceberam se os envolvidos queriam ir a jogo ou se estavam a fazer bluff. Seria justo que ao menos depois do desfecho pusessem as cartas na mesa. Existe, desde outubro de 2020, uma nova regra no póquer, que pode ser aplicável a qualquer uma das suas modalidades. Chama-se “Póquer Árabe” e consiste na obrigação de fazer o jogador profissional, o que normalmente ganha, mostrar as suas cartas ao jogador recreativo. O objetivo é ensinar, fazer compreender, descodificar, quem anda ali a tentar saber das estratégias dos que sabem. Foi uma regra criada no Poker Online. A aplicação da regra não é obrigatória. Também aqui não sucederá e é pena. Vamos para eleições sem saber exatamente porque assim aconteceu. Seria importante um momento da verdade antes de avançarmos para a próxima etapa.
Em nome do amor à arqueologia, e da procura da causa das coisas, podem ser traçados dois cenários:
1 - Todos os envolvidos queriam fechar o acordo mas estavam presos (nem todas as prisões são indesejadas) aos compromissos assumidos com o seu eleitorado e aos princípios fundamentais do respectivo partido.
2 – Uma das forças políticas envolvidas, ou todas, não queria acordo nenhum. No caso do Governo pode abrir-se a possibilidade de não terem visto como desfavorável um cenário de eleições antecipadas numa altura em que a direita não está organizada, o que por certo sucederá antes das próximas eleições ditas normais. Por outro lado, e no cenário de eleições antecipadas, o Governo surgirá como a mão que se pode agarrar para ter estabilidade, esse estado de graça que os mercados gostam e que, na verdade, todas as pessoas, que estão integradas na sociedade liberal, precisam. Mais, o Governo representará a estabilidade e depois de se ter recusado a acatar condições do que agora se chama de “extrema-esquerda”. Ou seja: dos partidos de esquerda esquerda. Hoje não é dia para falar desse tema, o da “invenção da extrema-esquerda” mas o tempo virá. Vamos continuar. O Governo, ou melhor, o Partido Socialista, surgirá em eleições antecipadas mais do agrado dos moderados, esses eleitores que fazem ganhar e perder eleições e que estão cada vez mais deslocados para a direita.
Ainda no segundo cenário, pode também dar-se o caso de ter sido o PCP a não estar interessado num acordo. Já tinha viabilizado um orçamento e, se muitos reconheceram o mérito desse esforço, e é certo que foram muitos a fazê-lo, interessava aqui saber quantos desses são militantes ou eleitores do PCP. Existe a possibilidade de ter sido um esforço – muito meritório e revelador de grande sentido de responsabilidade – que não foi vantajoso para o próprio partido. É importante que o partido se mantenha firme junto dos sindicatos. Podia o PCP ter arriscado viabilizar sozinho o OE sem uma conquista inequívoca como seria a do aumento do salário mínimo nacional nos termos apresentados?
E por fim, pode dar-se o caso de ter sido o Bloco a não ter querido viabilizar o Orçamento. O Bloco conseguiu evitar ser avaliado pela posição tomada no anterior orçamento mas não por uma ação sua; o facto de o PCP ter tomado a decisão de viabilizar o orçamento deu alguma liberdade ao Bloco e não saberemos o que teriam feito noutra situação. Também esta posição do Bloco, ou as respectivas consequências, podem ter várias leituras e opostas: a de que o Bloco não cedeu e não se conformou com o orçamento, sem que tivessem sido satisfeitas as condições que tornou públicas (aqui numa lógica de firmeza política) ou a de que não se pode contar com o Bloco porque é um partido que não aceita comprometer-se, por muito tempo, com soluções governativas e que pretende estar na eterna juventude. Um partido que quer apenas ser oposição ou contestação, o que aliás sabe fazer muito bem.
Ainda em relação ao Bloco e ao PCP importa aqui fazer notar que são partidos que lutam pela sua sobrevivência e que essa luta não deve ser vista como egoísta ou autocentrada. Devemos a essa luta, e a esse esforço, termos dois partidos que defendem verdadeiras políticas de esquerda: os direitos dos trabalhadores, as pensões, um serviço nacional de saúde robusto, ensino público, etc. A luta destes partidos para se manterem presentes é uma luta colectiva. As consequências do seu desaparecimento, ou do seu enfraquecimento, seriam irreparáveis. São eles que nos separam de um sistema semelhante ao dos Estados Unidos: dois grandes partidos e ambos profundamente liberais. O caminho para a irrelevância política existe e pode mesmo ser irrevogável. Mas não falemos hoje do CDS.
Também a direita, aparentemente unânime na desaprovação do orçamento, podia não partilhar dessa unanimidade. Vejamos: a Paulo Rangel interessa que não se perca tempo na questão da liderança do PSD. Tem o apoio do aparelho e, nesse sentido, está mais que pronto para a disputa. Já Rui Rio precisa de fazer uma campanha interna, de conquistar o apoio dos militantes. Marcelo Rebelo de Sousa facilitou a vida a Paulo Rangel: anunciou a dissolução do parlamento caso o OE não fosse aprovado na generalidade, cortando pela raiz a possibilidade de outros cenários.
E continuámos no póquer. Feita a arqueologia falta perguntar: o que se segue?
Existe a possibilidade de nos termos tramado bem. Perdeu-se a oportunidade de aprovar um OE melhorado pela satisfação de algumas exigências do Bloco e do PCP - este é o grande prejuízo - e vamos para eleições com a esquerda a lutar entre si, nada de novo, mas numa altura em que o país acusa um desejo de viragem à direita. A esquerda não quis saber disso e agora não tem grande alternativa que não seja a de manter as narrativas. É observar a luta entre socialistas e bloquistas e comunistas. Curiosamente, e para já, alguma acalmia na habitual luta entre os últimos. Parceiros acidentais. Menos mau; alguma paz, mesmo que efémera, faz bem. Boas razões teriam para não se desentenderem tanto.
A esquerda, em nome dos seus princípios, arriscou a situação dos trabalhadores, a dos pensionistas, a do Serviço Nacional de Saúde, etc. Acabaram com o que restava da geringonça em nome de uma coisa melhor mas podem ter-nos atirado para uma pior. Não existe aqui um passar a mão pelo dorso do Governo: incompreensível que não tenham aceitado algumas das propostas que estavam em cima da mesa. Como pode um partido de esquerda recusar que o cálculo da indemnização por despedimento ilícito seja feito com referencia ao período de vinte dias e não aos doze que os tempos da Troika aqui deixaram? É um exemplo. Infelizmente há mais.
O futuro está hoje mais próximo. Podia ser o anúncio a uma tecnologia de ponta mas não; é o retrato da nossa situação política. Agora é observar cada esquerda, em cada esquina, a reivindicar que o voto em si é que é o verdadeiro voto antifascista. O Partido Socialista a defender que a sua vitória é a única garantia de que a extrema-direita não chegará ao poder, Bloco e PCP a defender que apenas verdadeiras políticas de esquerda – como são as suas – constituem luta política ao crescimento do partido neofascista racista. O pior é que todos têm razão.
É certo que o adversário do PS não é o Chega. Seria então importante que ficasse mais claro o que distingue este Partido Socialista desta social-democracia.
À direita joga-se de outra maneira: Rangel afirmou não querer parcerias com o Chega. Por alguma razão a direita não lhe pergunta se essa declaração equivale a um compromisso, perante os portugueses, de que não as fará em circunstância alguma e que um voto num PSD, por si liderado, é um contributo para que a extrema-direita não chegue ao poder. A pergunta a Rui Rio, salvo melhor opinião, perdeu a relevância. Já a respondeu com atos e com omissões.
(Curioso notar como os partidos querem soluções políticas para o que nunca se resolveu em eleições: o fascismo. Foi sempre em eleições que entrou. Para sair é que as eleições não costumam ser suficientes. O nosso sistema não permite que o boletim de voto contenha a possibilidade de se meter uma cruz num partido neofascista e racista mas ela lá está. Outra vez: a única coisa que a história ensina é que a história não ensina nada.)
O póquer trouxe-nos aqui.
Agora pode esperar-nos a roleta russa.
Um amigo, com um problema de adição ao jogo, disse-me que jogar é apaixonante sobretudo quando se aposta aquilo que não se pode perder. Parece mais uma boa caracterização de um estado de angústia. E, não, os trabalhadores, os pensionistas e os que acreditaram numa solução alargada à esquerda, não deveriam estar a assistir a um jogo onde se está a arriscar aquilo que não se pode perder.
Se é isto a democracia? É. Aceitar faz doer menos. Mas só existe democracia se houver participação. As eleições não se devem temer mas não vale fazer delas um exercício da fortuna ou do azar.
É que, mesmo quem não participa, vai sempre a jogo.
Participar é usar o que se tem à mão. Não precisa de ser uma ferramenta agrícola. Pode ser só uma caneta para fazer uma cruz. Reparem que até o Curling, com as suas estranhas vassouras, é uma modalidade olímpica.