Opinião

A saúde mental num mundo (ainda demasiado) desigual

Francisco Sampaio

Existe hoje, nos denominados países desenvolvidos, uma representação social acerca da doença mental e uma acessibilidade a cuidados de saúde mental francamente melhores do que aquelas que existiam no século XX. Negar essa realidade é olhar o mundo com pessimismo, com um pessimismo muito superior àquele que os dados factuais nos podem permitir comprovar.

Contudo, hoje, 10 de outubro de 2021, Dia Mundial da Saúde Mental, continuamos a viver o nosso dia-a-dia prestando escassa atenção àquilo que se passa mesmo ao nosso lado. Sentimos compaixão quando somos confrontados com os soundbites noticiosos provenientes do Afeganistão, mas ignoramos quase em absoluto a desoladora crise humanitária que se vive há já largos anos no Iémen. Sentimos consternação quando assistimos às imagens do assassinato de George Floyd mas, ainda que inconscientemente, relegamos para segunda opção um candidato, numa qualquer entrevista de emprego, devido à cor da sua pele. Não hesitamos em afirmar que tratamos no respeito pela igualdade qualquer pessoa LGBT+, mas no dia em que um político revela ser homossexual essa torna-se notícia de primeira página porque todos presumimos que alguém é heterossexual até que afirme não o ser.

Mas afinal, qual é a relação entre tudo isto e a saúde mental? A resposta poderá ser demasiado longa e complexa para caber num artigo de opinião, mas os mais variados estudos realizados ao longo da pandemia da covid-19 ajudam-nos a encontrar uma resposta: as pessoas que apresentaram uma maior vulnerabilidade no que concerne à sua saúde mental foram precisamente, entre outras, aquelas que são vítimas de violência doméstica, os imigrantes, as pessoas pertencentes a grupos étnicos e sexuais minoritários, os profissionais do sexo, e as pessoas em situação socioeconómica mais precária. Para estas pessoas o mundo continua demasiado desigual, sendo que essas desigualdades apresentam consequências penosas para a sua saúde mental.

Mas importa olhar também com particular atenção para os países de baixo ou médio rendimento. Nesses, os números deixam pouca margem para dúvidas acerca das carências existentes: 75% a 95% das pessoas com doença mental não têm qualquer acesso a cuidados de saúde mental. Nesses, contrariamente ao que sucede nos países de alto rendimento, há algo que falta e que torna a perpetuação da situação ainda mais intolerável: falta uma luz ao fundo do túnel ou, melhor dizendo, falta a esperança.

Em Portugal é sabido, há já largos anos, que a saúde mental é o parente pobre da saúde. Contudo, e pese embora tudo o que de negativo adveio da pandemia da covid-19 (inclusivamente ao nível da saúde mental da população), esta serviu para alertar os decisores políticos para a necessidade de investimento nesta área. E é aí que, para todos nós, reside a esperança. O Orçamento de Estado de 2021 prevê uma verba de 19 milhões de euros para a saúde mental, valor substancialmente superior, por exemplo, aos 10,6 milhões de euros atribuídos em 2020.

Ainda que se tratando de um país desenvolvido, também em Portugal subsistem desigualdades no acesso a cuidados de saúde mental, sobretudo para as pessoas mais pobres e com maiores carências socioeconómicas, que têm menos possibilidades para aceder a consultas de especialidade e à aquisição de medicamentos. Este trata-se de um problema grave, na medida em que a negação do direito à saúde aos mais pobres constitui uma importante violação do Artigo 64º da Constituição da República Portuguesa. Resta-nos aguardar que a tão propalada “bazuca europeia” seja efetivamente a chave para a resolução desta questão.

Sabemos hoje que a aposta na saúde mental é fundamental e que se trata de uma missão de todos: cidadãos, profissionais de saúde, organizações de saúde, etc. Porém, é também hoje muito claro que o poder político tem nas suas mãos um dos mais importantes papéis a esse nível. Se este for capaz de minimizar as desigualdades sociais entre os cidadãos, então estará a prestar um contributo de valor inestimável para a saúde mental de todos. Assim o esperamos...

Enfermeiro especialista e Presidente da Mesa do Colégio da Especialidade de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros

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