Opinião

Novos tempos

Novos tempos

Carmo Afonso

Advogada

Vejo alguns a falar na possibilidade de se fazer uma oposição conjunta e concertada que inviabilize, ou que pelo menos dificulte, o exercício do cargo por Carlos Moedas e que precipite novas eleições. Diria que é má ideia ou que é uma ideia pouco democrática

Carlos Moedas será o próximo presidente da Câmara Municipal de Lisboa. A sua candidatura foi a mais votada não obstante terem sido as de esquerda, no seu conjunto, a obter mais votos.

Há aqui uma diferença que impede Fernando Medina de fazer o que fez António Costa com o resultado eleitoral, que não o favoreceu, das legislativas de outubro de 2015: é que a eleição do presidente de câmara não admite entendimentos posteriores ao sufrágio. Não tem a ver com política, é mesmo a lei que assim o determina. É certo que grande parte dos eleitores desconhecia essa limitação e na noite de domingo esse desconhecimento foi manifestado.

A democracia convive com desconhecimentos, falhas, enganos e erros. Convive com as pessoas. No domingo eram várias as que estavam convencidas da vitória de Medina – ou as sondagens falharam ou os lisboetas mudaram, certo é que tiveram impacto – para lá da possibilidade de um acordo pós-eleitoral. Algumas dessas pessoas votariam de outra forma se estivessem informadas ou simplesmente teriam ido votar em vez de confiar que estava assegurado. Para essas foi pancada de cego.

Adiante.

O resultado de domingo, que só chegou na segunda, é uma derrota para a esquerda. Aqui saímos dos factos e entramos nas opiniões. Alguma esquerda entende que a de Fernando Medina não é bem esquerda e até que, entre Medina e Moedas, a diferença não é muita. Não se percebe a que se referem. Os programas das candidaturas, as políticas que propõem, são opostos. Talvez se trate de uma análise de personalidade. Talvez se trate ainda de uma forma de aceitar melhor este resultado. É próprio das pessoas interpretarem a realidade, às vezes as próprias memórias, de uma forma que dê conforto. Pode ser o caso aqui.

Carlos Moedas teve uma grande vitória não obstante o número de votos que a determinou. Qualquer vitória seria sempre extraordinária, o próprio suspense já seria. Aceitar este resultado e reconhecer o mérito de Rui Rio e do próprio é ser democrata. Uma surpresa em noite eleitoral é sempre um sinal de vida democrática, o povo é quem mais ordena.

Importante abrir uma exceção aqui para a vitória de partidos que violem a lei e sobretudo quando se tratem de violações que deveriam determinar a sua extinção. Esses partidos não deveriam figurar no boletim de voto; qualquer pequena vitória de um deles é uma grande derrota para o sistema democrático. Não se deverá falar, nesses casos, de manifestações de vida democrática, apenas de ameaças.

A alternância entre a esquerda e a direita é considerada positiva e salutar. As razões normalmente apontadas não são as melhores: para evitar que sejam sempre os mesmos, uma espécie de “fazer rodar a fila”. Serão os moderados do bloco central a pensar assim. Não vejo nos governos de direita a defesa dos direitos dos trabalhadores, mesmo dos já adquiridos, a necessária aposta pública na educação, no serviço nacional de saúde, etc. Não deve ser impeditivo de ver nessa alternância alguns aspectos positivos e há um que salta à vista: fazer sentir na pele dos partidos de esquerda a importância de chegar a entendimentos, de colocar o interesse colectivo acima do interesse do próprio partido, de participarem em soluções de governação.

Não há mundos perfeitos. Os partidos de esquerda – Bloco e PCP – devem assegurar a sua continuidade e o seu crescimento e, muitas vezes, tal objectivo não é conciliável com entendimentos. Respeitar a estratégia que prosseguem, mesmo que nos leve a sítios desagradáveis, impõe-se.

Acontece que, no caso de Lisboa, boas razões existiam para se ter formado uma coligação à esquerda: a impossibilidade legal de o fazer depois das eleições (talvez a lei não faça muito sentido mas é obrigatório gerir, em cada momento, as condições que existem), as provas dadas por entendimentos anteriores na autarquia e a oportunidade, no momento certo, de demonstrarem que são capazes de separar as águas ou, neste caso, de as juntar por uma cidade.

Para além dessas razões existem outras que deveriam ter sido ponderadas e que, mesmo agora e sem que o exercício aparente tenha utilidade, devem ser ditas. Não se aplicam só ao caso de Lisboa e nem à governação autárquica. É que qualquer entendimento com forças políticas comprometidas com princípios de esquerda – ao nível destes partidos – terá mais do que um efeito eleitoral; representará uma mudança efetiva nas políticas que vão ser seguidas. É incompreensível que isto não seja valorizado. Para que servem estes partidos? Exclusivamente para fazer oposição eterna? É essa a ambição das lideranças? E a dos militantes?

Encarar um entendimento entre partidos apenas como uma cedência ou como estratégia para chegar ao poder é pouco. Da parte de quem os estabelece e da parte de quem os apoia. Existirá sempre uma consequência política maior e que não se alcança a fazer oposição: a de concretizar.

Também o Partido Socialista, que formou governo em 2015 graças a esta esquerda, deverá partir para um entendimento com um espírito melhor do que o de quem mete o pé numa pedra para ter apoio e balanço para saltar para o outro lado do ribeiro. Não serve. E ficou à vista que a questão é atual.

O pensamento e os raciocínios são uma perdição. A inteligência pode ser usada não para chegar à melhor conclusão mas sim para justificar, enquadrar, relativizar, uma má. É por isso que não podem ser ignorados, nem da vida política, os instintos. A esquerda poderá encontrar mil razões para justificar que o que está feito está bem feito. Duvido que seja esse o instinto e o sentimento, que não cause uma guinada qualquer constatar que a entrega da Câmara Municipal de Lisboa à direita poderia ter sido evitada.

Os desgostos políticos, como os restantes, curam-se. Olha-se para trás e até se reconhece alguma piada naquilo que foi fatal. Lembro-me de ouvir Marcelo Rebelo de Sousa contar que perdeu uma debate eleitoral para Jorge Sampaio, e por isso também as eleições para a Câmara Municipal de Lisboa, porque admitiu (autorizou, concordou) que Jorge Sampaio o tratasse de um modo informal, creio que pelo seu nome próprio. Contou a história com humor mas é fácil considerar que, na altura, foi amarga.

É preciso deixar o tempo passar. As sucessivas experiências políticas – falo aqui de quem vota e se interessa, de quem torce e se torce – ensinam muitas coisas, ganham alguma poesia. Nada que pudéssemos ter aprendido numa versão compactada.

Vamos a “Boyhood, Momentos de Uma Vida”, o filme de Richard Linklater que acompanha a vida de uma família, e sobretudo a de um miúdo, “Mason Evans” (Ellar Coltrane) e da sua mãe, “Olivia Evans” (Patricia Arquette) – durante doze anos. Conhecemos “Mason” com seis anos e vemo-lo entrar para a universidade com dezoito. É um filme que tem aspectos de documentário ou que, pelo menos, deixa uma memória documental. Mas não. É pura ficção. As filmagens demoraram mesmo doze anos, para acompanhamos o crescimento de “Mason” e o envelhecimento de “Olivia” em tempo real. Não foi o único objectivo do realizador e nem a única consequência. Ver este filme é encontrar na vida quotidiana das personagens os momentos épicos. Sobre o filme disse o realizador: “Quis que refletisse a forma como passamos pela vida, sem saber o que nos espera. O oposto de uma filmagem habitual em que os diretores querem ter tudo sob controle, onde organizam a realidade para que se encaixe na sua narrativa.”

A vida como ela é. Ver o “Boyhood” ajuda a valorizar o tempo, a importância que tem na transformação das pessoas e na relativização do que parece inultrapassável. Não é possível saltar por cima do tempo e ainda bem. Isto não se fazia na versão curso intensivo e há um filme que fez desse decurso, o normal do tempo, o elemento fundamental do enredo. Doze anos de vida em três horas de filme que na verdade são doze anos de filme.

Na parte final há um telefonema entre a mãe e o filho, no qual ela percebe, e nós também, que já é bastante dispensável na vida dele. Não é uma morte, não é uma doença, é apenas a mágoa de um telefonema. Dói. Aquilo não se inventa. Foram tantos anos, com falhas e méritos, a criar aquele filho. Outra vez: a vida como ela é.

Para ter um grande desgosto não é preciso um grande acontecimento, basta viver. O mesmo para o resto: aprender, adquirir traumas ou ultrapassá-los. E mesmo os que parecem estar apenas a assistir não estão obliterados da experiência.

No domingo pode, como afirmou Carlos Moedas, ter começado um momento de viragem política. Contamos com quase cinquenta anos de democracia e, como no “Boyhood”, a grande experiência tem sido o dia a dia. As reviravoltas sucedem-se mas, vistas em retrospectiva, são sempre continuidade. Já assisti à alternância entre a esquerda e a direita alguma vezes. Pode mesmo medir-se a idade de uma pessoa em viragens políticas. “A quantas já assististe?” é uma unidade de medida.

Pode também ter sido um despertador. Os anos contarão melhor a história.

Vejo alguns a falar na possibilidade de se fazer uma oposição conjunta e concertada que inviabilize, ou que pelo menos dificulte, o exercício do cargo por Carlos Moedas e que precipite novas eleições. Diria que é má ideia ou que é uma ideia pouco democrática. “Tudo o que se faz por amor está para além do bem e do mal” escreveu Nietzsche. Isto poderia ser extensível à política. Só que não. Há coisas que não se devem fazer. Não se entenderam para impedir a sua eleição, agora deixem-no governar. Deixar governar é não inviabilizar o mandato mas não significa viabilizar as más políticas. E se forem todas más? Bom, aí teremos um problema sério e eventualmente a respectiva solução. E se forem todas boas? Será uma surpresa maior que a de domingo à noite.

Ouvi, no seu discurso, a extensa lista dos nomes a quem o futuro presidente quis agradecer. Muitos nomes de um outro mundo, já lá estivemos. Costuma acontecer assim: entramos nos novos tempos, trazemos velhos traumas. Mais raro é anunciarem novos tempos e apresentarem propostas dos anos oitenta. Mas aqui estamos, agora é lidar. Só não falemos disto mais do que é necessário.

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