Opinião

Portugal visto a partir de um gin de 15 euros publicado nas redes sociais

As famílias “mais ricas” dos 82% que recebem menos de 27.500 euros/ano, ficaram com 9.908 euros/ano: 27 euros/dia. (...) Um gin num lugar da moda custa mais ou menos 15 euros. (...) A crítica é toda para um país tão pobre que torna o 'drink' de fim de tarde - se não for oferecido pela Ministra da Cultura - num luxo

Confesso que não sei bem se este ano ainda foi trendy publicar nas redes sociais fotos de gins com o mar ao fundo. Na verdade parece ser tema visual que já interessa pouco: a menos que estejamos com os pés dentro de água em Mombaça, servidos por locais e a ler poemas de Rudyard Kipling, é coisa que já não entusiasma ninguém. Digo a menos que, porque este cenário seria coisa para deixar os woke em sobressalto; seria, se tivessem lido Kipling. Mas divago. Dizia que é tema visual que já não entusiasma ninguém, e acrescento: é pena. É pena, porque as fotos dos gins “com botânicos” é um bom ponto para pensarmos o estado do nosso país: pobre e de gente solitária.

82% dos agregados familiares portugueses recebem menos de 27.500 euros/ano. Sendo que 70% recebe menos de 19.000 euros/ano. Os montantes referem-se a salários, pensões ou outros rendimentos empresariais, de capitais ou prediais, usados para efeitos de IRS. E estamos a falar de valores brutos, sobre os quais incide ainda a carga fiscal e as contribuições para a segurança social a cargo do trabalhador no caso de trabalhadores por conta de outrem. E disse agregados familiares, não disse pessoas.

Por falar em agregados familiares: são cada vez mais e cada vez menores. As nossas famílias nucleares têm cada vez menos gente, o que, provavelmente, significa que estamos cada vez mais sozinhos; pelo menos no nosso espaço íntimo e na zona de tomada de decisões importantes. Não especulo. No que à dimensão dos agregados, digo. Entre 1990 e 2019 a população residente não cresceu mais que meio milhão, e porém o número de agregados familiares, que em 1990 eram cerca de 2,7 milhões, passaram a ser, em 2019, cerca de 5,4 milhões.

Deixemos as tecnicidades: os poucos - muito poucos - que estejam no topo destes 82% e ganhem 27.500 euros/ano e tenham um agregado familiar de uma só pessoa, ganham menos de 2.000 euros/mês. Daí em diante é sempre pior. Por exemplo, dentro dos 70% - 7 famílias em 10! - dos que ganham menos de 19.000 euros, há 14,5% de famílias que ganham entre 13.501 euros e 19.000 euros. Se a família for de duas pessoas com rendimentos e sem filhos, no melhor cenário ganham em média menos de 680 euros/mês. Pouco mais que o salário mínimo.

Já vos disse que daí em diante é sempre pior? É porque há 15,6% que ganham entre 10.001 e 13.500 euros/ano, 26,7% que ganham entre 5.001 e 10.000 euros/ano e 12,5% de famílias que ganham menos de 5.000 euros/ano.

Por falar em salário mínimo: estamos a falar de trabalhadores. Estamos a falar de pessoas que trabalham e que, não obstante esse contributo produtivo, recebem vergonhosamente pouco, sobretudo se estivermos a falar de um país que tenha aspirações a ser um país rico, desenvolvido e justo. Por falar em salário mínimo, outra vez: surpreende que esta discussão do salário mínimo - sublinho: mínimo - seja tão mobilizadora? Surpreende que seja mesmo mais mobilizadora que a questão da carga fiscal, tão incapacitante da nossa competitividade?

Talvez falar de fiscalidade, como uma certa direita insiste - e bem! -, não seja exactamente a melhor forma de captar a atenção destes eleitores para quem, directamente, a carga fiscal não parece pesar assim tanto. Ganhando tão pouco, acabam por pagar nada ou quase nada, deixando os encargos para o resto da população. É claro que a questão da fiscalidade é relevantíssima: com serviços públicos em muitas áreas insuficientes; em boa parte delas a necessitar de mais complementaridades com o sector privado e social; noutras a configurar verdadeiros obstáculos à iniciativa privada; noutros ainda a serem verdadeiros sorvedouros de dinheiros públicos; esta carga fiscal é um cancro inibidor do crescimento económico. E sem crescimento económico não há criação de riqueza. O problema é que, com esta conversa, já perdi a maior parte dos 82% de agregados familiares para quem a luta diária é inglória, e esta discussão demasiado distante da sua realidade quotidiana.

Porquê? Já num artigo aqui, há umas semanas, falei da Rede Europeia de Orçamentos de Referência e dei este exemplo: na zona de Lisboa, em 2015 - agora não é melhor -, uma família com dois adultos e duas crianças gastaria, por mês, para “alimentos e equipamentos de cozinha necessários para os preparar, servir, consumir e conservar”, cerca de 766 euros/mês. Se, facilitando, acrescentarmos, vá, 700 euros de encargos com a habitação, gás, electricidade e comunicações, temos 1.466 euros/mês para o básico. Voltemos aos “mais ricos” dos 82% que ganham menos de 27.500 euros/ano. Dando de barato os impostos e a contribuição para a Segurança Social cobrados à cabeça, daria um encargo fixo de 17.592 euros/ano. As despesas de educação, saúde e transportes ficaram de fora deste cabaz. E as famílias - repito: as “mais ricas” desses 82% - ficaram com 9.908 euros/ano: 27 euros/dia.

Voltemos ao gin. Um gin num lugar da moda custa mais ou menos 15 euros. E 15 euros, com estes rendimentos, é um luxo. Já fotografá-lo e partilhá-lo com os “amigos” das redes sociais é gregarismo compreensível; e numa sociedade cada vez mais atomizada dificilmente condenável.

Um esclarecimento óbvio: a crítica não é para quem se "liga" a outros nas redes sociais, para quem o faz através de uma fotografia de um momento de lazer usando uma trend do momento, para quem quer fazer parte do que "está a dar". Quem nunca? Asseguro-vos que há nisto menos moralismo que coentros num copo de Hendrick's. A crítica é toda para um país tão pobre que torna o drink de fim de tarde - se não for oferecido pela Ministra da Cultura - num luxo.

É difícil à direita falar para estas pessoas? Custa-me a crer que seja, mas tenho uma certeza: enquanto os partidos da direita tradicional não forem capazes de lhes endereçar uma palavra inteligível e de esperança, não surpreende que o PSD e o CDS, juntos, não somem mais que 26,7% nas intenções de voto, enquanto o PS se passeia por vales áridos com 34,8%.

Já vos disse que daí em diante é sempre pior?

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate