Opinião

A direita tem de defender creches gratuitas para todos

Como é que num país estrangulado demograficamente, com rendimentos familiares médios tão baixos, com um Estado tão empobrecedoramente despesista, pode a direita abandonar a defesa das creches tendencialmente gratuitas?

Portugal está a morrer. E não estou a exacerbar os definhamentos que nos afectam: na economia, no funcionamento das instituições, na cultura democrática, na defesa e usufruto das liberdades. Estou mesmo a falar de morte demográfica. Portugal está a morrer mesmo.

Em 15, 20 anos, o “inverno demográfico” será o grande desafio a enfrentar. Em 2018 Portugal tinha 22% da população com mais de 65 anos. Os países do Leste Europeu têm todos valores abaixo dos 20%. A par da competitividade económica, este é o tema que nos deve ocupar como país. Um tema, aliás, que vai condicionar as políticas públicas, por causa do impacto que terá nas desigualdades, na pobreza, na economia, na Segurança Social e nas finanças públicas. Não sou eu que o digo, é Joaquim Miranda Sarmento no seu recente livro “Portugal: Liberdade e Esperança”.

Ora, para enfrentar este garrote, e estimular a natalidade lusa, a questão das creches surge amiúde no debate político. Porque num país com fracas práticas de conciliação da vida profissional, familiar e pessoal, com demasiado tempo gasto em movimentos pendulares, com serviços de transportes públicos sofríveis em muitas cidades do país e com a falta de liquidez com que se debatem boa parte das famílias, ter onde deixar os filhos entre os 7 meses e os 3 anos é uma questão central de planeamento familiar.

Portugal tem um sistema de protecção da parentalidade que permite, partilhado entre progenitores, ficar com um bebé até aos 6 meses em casa. E tem, a partir dos 3 ou 4 anos, um ensino pré-escolar tendencialmente universal e "gratuito". Daí em diante, o ensino básico e o secundário, são também eles universais e "gratuitos". Gratuito aparece entre aspas, porque lembrando a Senhora Thatcher, não há cá essa coisa de dinheiro público, e aquilo que possa parecer gratuito a alguns é pago com o dinheiro de todos. Mas já voltamos a este assunto: o da utilização do dinheiro dos impostos.

Quanto à universalidade e "gratuitidade" a partir do pré-escolar, com excepção de uns poucos muito ideologicamente motivados, ninguém na sociedade portuguesa verdadeiramente as questiona, pelo menos até ao ensino superior. Porquê, então, fazê-lo entre os 7 meses e os 3 anos? Neste período não é nem universal nem gratuito. É uma roleta. Um salto de fé: para conseguir arranjar um lugar em creche, nem sempre garantido, onde a criança tem que ser inscrita antes de nascer, às vezes antes do resto da família saber que vai nascer. Um sacrifício familiar: para se conseguir pagar a mensalidade.

Ah, mas as famílias com rendimentos mais baixos já não pagam creche, dirão alguns. Isso é verdade e é positivo. O problema é que essa visão coloca uma questão estratégica nacional a ser discutida ao nível de uma política de acção social. E o meu ponto é exactamente esse: a questão das creches hoje já não é um tema de acção social, é um tema de sobrevivência nacional.

Presentemente, arrumadas em escalões de rendimentos definidos, as famílias pagam em função dos rendimentos declarados: quem declara rendimentos mais baixos não paga, quem declara rendimentos mais altos paga a tarifa máxima. Neste caso nem vale a pena falar no achatamento do escalonamento fiscal como responsável por esta situação, porque a partir do meio dessa tabela o pagamento máximo já é garantido.

Porquê esta conversa agora? Porque não há político de direita que, entre os 10 principais problemas da sociedade portuguesa, não identifique a baixa natalidade, o escasso apoio às famílias e os baixos rendimentos da classe média entre eles. E soluções?

Paulo Carmona, candidato da Iniciativa Liberal à Câmara Municipal de Sintra, veio propor um cheque-creche para atribuir a todas as famílias do concelho com o propósito de as tornar gratuitas para todos. Com isso financiar a procura, e libertar a escolha; o que é, desde logo, uma mudança significativa num país normalmente habituado a financiar a oferta. Não faltaram críticas vindas da direita: afinal os liberais também são socialistas; a medida é populista porque não considera o peso - e a rigidez da despesa - no orçamento do município; essa competência não é dos municípios; e isto - o preço - não é um problema, porque as famílias mais carenciadas já têm creches gratuitas e o problema é mesmo o da cobertura da resposta.

Há nestas críticas pontos relevantes, irrelevantes, equívocos, discutíveis e redutores. Do geral, sobra uma indagação urgente: como é que a direita patriota, da defesa da família, da liberdade de escolha e do aumento do rendimento da classe média pode ser contra esta proposta? Formulo melhor: como é que num país estrangulado demograficamente, com rendimentos familiares médios tão baixos, com um Estado tão empobrecedoramente despesista, pode a direita abandonar a defesa das creches tendencialmente gratuitas?

Uma família de classe média paga, entre os 7 meses e os 3 anos - ou até à idade em que a criança tenha vaga no pré-escolar - cerca de 300 euros mensais, se tiver um filho; e quase o dobro, com um ligeiro desconto no segundo, se tiver dois. Remeter o tema para o domínio da acção social é, pelo menos, ligeiro e equívoco. Discutir ideologias, se a medida é liberal ou socialista, quando há famílias que, por causa disso, se digladiam com dilemas como ter filhos ou não ter, e erodir mais a sua liquidez mensal ou não - optando tantas vezes pela segunda opção dos pares -, é não atender adequadamente aos problemas que acima identifiquei e que repito: baixa natalidade, falta de apoio às famílias e baixos rendimentos da classe média.

A menos que se derrogue a importância e presença do Estado em funções essenciais e estratégicas, coisa que nenhuma direita na tradição portuguesa alguma vez fez, redefinir prioridades para o uso do dinheiro público não é socialismo, é opção de gestão e priorização política. Mais ainda se se tratar da sobrevivência/sustentabilidade do país. Aliás, nem - como se evidencia na proposta da IL - um liberal sensato defende o fim do Estado e renuncia às suas possibilidades de acção. O mais, é propaganda ao serviço da esquerda.

Se a competência é dos municípios ou da administração central, é coisa para a Assembleia da República discutir. O que a IL propôs em Sintra, olhando para a margem que encontrou no orçamento da câmara, foi incentivar as famílias do concelho a ter filhos e assegurar maior liquidez à classe média. Chama-se competitividade municipal.

Há nas críticas um ponto que merece atenção: a sustentabilidade orçamental. Esta medida custará cerca de 5% do orçamento camarário em Sintra. Admito que, na ausência de identificação de despesa a cortar, o primeiro passo seja oferecer apenas algumas horas semanais gratuitas (à semelhança de outros países na Europa), mas este debate é incontornável. E tem de ser feito. Entregá-lo, de bandeja, nas mãos da esquerda será mais um erro que a direita cometerá. Se há tema em torno do qual faz sentido a comunidade organizar-se, pagando impostos, é este: o de assegurar o futuro do país.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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