Opinião

Entre nómadas e sedentários

Queiram ou não os apóstolos da xenofobia e dos nacionalismos, a verdade é que a humanidade continua a mexer-se, como as terras de lava

Este quase ano e meio de crise pandémica trouxe muitos desafios, ao quais se tenta responder com renovadas leituras de realidades consolidadas. Uma dessas renovadas leituras é a razão de ser desta pequena reflexão: nómadas contra sedentários.

O tópico em causa, desenvolvido de diferentes perspetivas, como a histórica, a política a antropológica e a religiosa, surge a propósito da nova face das migrações, sobretudo dirigidas ao continente europeu e ao modo como este fenómeno tem contribuído para alterar o nosso paradigma perante o outro, o diferente, o estrangeiro.

É certo que a relação entre sedentários e nómadas, entre cidadãos e bárbaros, a luta pelo território é de sempre, não nasceu com esta nova vaga de migrações. A história do mundo, a história da humanidade é, aliás, uma história de invasões, migrações, sobreposição e aniquilamento. Todos começámos algum dia por ser nómadas, chegando mais tarde a sedentários, sendo posteriormente substituídos por novos nómadas (agora até temos nómadas digitais).

Aliás, basta lembrar a Bíblia, no Velho Testamento, e aí encontraremos a referência à sedentarização do Homem, através da narrativa sobre Caim, o primeiro sedentário, lavrador, ligado à terra e Abel, seu irmão, nómada, pastor e recolector (lembre-se que Caim matou Abel). Ou seja, já nas sagradas escrituras se descreve a luta entre os que marcam um espaço, um território, como seu e os que desafiam essa marca, essa pertença.

Mas se sempre foi assim, o que há de novo? Ora o que temos de novo, hoje, é o desafio ao sedentarismo, aos que pensam que o mundo cristalizou, nomeadamente, a classe média europeia do pós-guerra. Daí a resistência face à mobilidade, perante a flexibilidade, no fundo, o receio do nomadismo, com a chegada do estrangeiro, seja ele imigrante, expatriado, refugiado ou, nalguns casos, até o simples turista.

Não estamos perante um tema fácil e o mesmo tem muitas dimensões complexas cuja abordagem detalhada exigiria outras crónicas. Todavia não deixa de ser, ainda que em modo simplificado, um tema de forte e premente atualidade. E ainda que, com a pandemia pareça ter passado mediaticamente de moda, a verdade é que, quase todas as semanas, morrem seres humanos a tentar atravessar o Mediterrâneo, levando mesmo o Papa Francisco a chamar-lhe, recentemente, o cemitério das novas migrações.

Ou seja, queiram ou não os apóstolos da xenofobia e dos nacionalismos, a verdade é que a humanidade continua a mexer-se, como as terras de lava. O vulcão demográfico, a vontade de viver e de poder, faz sempre estremecer os alicerces do nosso quotidiano mais ou menos sedentário, as nossas certezas de europeus sentados na sua próspera estabilidade.

De um lado, estão os que vivem em permanente mobilidade, os trabalhadores da era da globalização, quer sejam ricos, como os financeiros, consultores, engenheiros das empresas internacionais, quer sejam pobres, como os que todos os dias fogem da miséria em busca de um mundo melhor, e, do outro, todos aqueles cujo trabalho está ligado umbilicalmente a um território, mais ou menos servidos pela sorte do emprego, mas que sentem a ameaça da deslocalização do trabalho em larga escala.

Vivemos um tempo paradoxal: no momento em que é possível assistir à unidade do espaço terrestre e em que as diversas redes multinacionais se expandem, crescem os particularismos. Daqueles que querem ficar só no seu país ou dos que buscam uma pátria de adoção, como se o conservadorismo de uns e o progressismo de outros estivesse condenado à mesma linguagem: o nativismo, a terra, as raízes. Lembrando Marc Augé, podemos evocar a dicotomia entre os lugares e os não lugares.

A linguagem volta a ser a do inimigo, do estrangeiro, da fronteira, do nosso território, da nossa pátria. Voltamos a olhar para a geopolítica e para a geoeconomia, o velho Estado volta a sonhar em reerguer-se através do seu povo, do seu poder político e do seu território. Voltamos ao discurso sobre a nossa língua, sobre os nossos costumes: “na Áustria, primeiro os austríacos”. Esta mensagem política, aparentemente esquecida, voltou a fazer-se ouvir na última campanha eleitoral para as presidenciais austríacas. Sinal dos tempos? Moda passageira? Não creio.

Lembremo-nos que sociedades que não conseguiram adaptar-se aos desafios que enfrentaram acabaram por se desmoronar. O nosso planeta está polvilhado de monumentos a sistemas políticos que desapareceram, deixando-nos apenas com as suas relíquias. No final quem vencerá? Os que estão ou, mais tarde ou mais cedo, os que chegam, como aconteceu com a queda do velho império romano?

O aroma do tempo, para usar a bela metáfora do filósofo coreano-germânico, Byung-Chul Han, demorará a devolver-nos a resposta. E esta chegará, ou como tragédia ou, de modo menos grave, sob a forma de farsa. Espero, sobretudo, que não estejamos à beira de assistir à vingança de Abel.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate