400 mil novos pobres e o país a ver a bola

É assim tão difícil apresentar um programa de reformas, com objectivos e ambição, e definir uma estratégia de comunicação, inteligível e mobilizadora, que solucione estes problemas?
É assim tão difícil apresentar um programa de reformas, com objectivos e ambição, e definir uma estratégia de comunicação, inteligível e mobilizadora, que solucione estes problemas?
É espantoso como o espaço mediático e as agendas partidárias passaram praticamente ao lado de uma das notícias mais importantes dos últimos tempos: há, em Portugal, 400 mil novos pobres. De acordo com um estudo da Universidade Católica, 400 mil pessoas passaram o limiar da pobreza. Para baixo. 400 mil portugueses passaram a viver com menos de 508 euros por mês. Não estamos a falar de pobreza estrutural, estamos a falar de gente, até aqui de classe média, que caiu na pobreza.
Se a esta notícia juntarmos as conclusões de um estudo do think tank Bruegel, conhecido o ano passado, que diz que metade das famílias portuguesas só tem poupanças para 5 meses de despesas básicas (renda, água, luz e gás) se ficar sem rendimentos, temos um retrato muito pouco festivo do país.
Repito: o país político e o país mediático ocuparam os seus slots de tempo com o circo habitual do presidente da Assembleia da República e a feira popular do Governo. Disse feira popular, porque estou a pensar na montanha russa que tem sido a condução do país na pandemia. E não, montanha russa não é indirecta a Medina. Tem mesmo a ver com a caracterização precisa que João Pereira Coutinho fez deste desnorte em que vivemos, na Sábado: "quando os casos descem, abrimos; quando os casos sobem, fechamos. E depois abrimos. E depois fechamos". Um sobe e desce só ultrapassado em vertigem pela relação que temos com a nossa selecção nacional de futebol.
Volto ao essencial: o país político está divorciado do país real. E isto, não explicando tudo, explica muito da abstenção, do protagonismo dos populismos, à esquerda e à direita, e da irrelevância do resto da oposição.
Os partidos populistas lusos, à esquerda e à direita, à falta de ameaças externas relevantes, tiveram que inventar inimigos internos para direccionarem os seus ódios e capitalizarem os descontentamentos: dos heteropatriarcados brancos e cigéneros opressores - não perguntem: os moinhos de vento são difíceis de explicar - aos ciganos; dos “ricos, que estão a acumular riqueza” aos “portugueses que não são de bem”. Com isso, como é próprio dos populistas, e se aprende em Psicologia 101, canalizam o descontentamento, transformam-no em ódio, e pelo caminho erodem a coesão e a solidariedade social, essenciais ao desenvolvimento sustentado dos países.
O resto da oposição de direita, essa, embalou na crítica pífia ao PS. E porque é que digo pífia? Porque não basta criticar o PS, é preciso apresentar uma alternativa. Quer isto dizer que o PS não é "o" problema, como a direita insiste? Eu estou convencido que, não sendo "o" problema, é uma parte muito significativa do problema. Não retiro, aliás, uma crítica que, aqui e noutros lugares, lhe tenho feito. Mas se é assim, a direita só se pode queixar de si própria. Que é aquilo que, em países democráticos, quando as coisas não correm bem e os males não vêm de fora, as oposições podem e devem fazer: queixar-se de si próprias. E, já agora, fazerem qualquer coisa útil para mudar as suas circunstâncias, que é aquilo que políticos capazes fazem.
O estimado leitor ainda está preso àquilo que já afirmei duas vezes? A inexistência de ameaças externas? A verdade é que do exterior até temos tido francas ajudas: não obstante as justificadas reservas dos frugais, e apesar da constatação ingénua e tardia de Elisa Ferreira, lamentando ser “penoso ver que Portugal, com estes anos todos de apoios, ainda continue entre os países atrasados”, a bazuca lá veio, com a qual o PS se prepara para prosseguir a “festa”. “Festa” não é invenção minha: foi a palavra que a ex-ministra socialista Maria de Lurdes Rodrigues usou para se referir à Parque Escolar, no tempo do Sr. Socrátes. Tudo normal, portanto: “o dinheiro é do Estado, o dinheiro é do PS”, Elisa Ferreira dixit.
Mas já alguém, na oposição, apresentou - ou comunicou adequadamente - um PRR alternativo, para além da crítica à distribuição de verbas entre sector público e sector privado? Eu sei que esta discussão colhe muitos frutos no país político, mas o país real só quer dinheiro no bolso, perspectivas de futuro, soluções para os problemas quotidianos e paz. Aliás, para essa discussão ideológica, estou convencido que o país real pensa o mesmo que o presidente da Assembleia da República pensa do segredo de justiça.
Da última vez que olhei para os dados estatísticos, em matéria económica, Portugal era o antepenúltimo em PIB per capita da zona euro, o penúltimo em remuneração média de trabalhadores por conta de outrem, antepenúltimo em produtividade do trabalho, por hora de trabalho, tínhamos a terceira maior dívida externa líquida em % do PIB. Em educação, a via onde os portugueses mais pobres sempre depositaram a esperança de verem os seus filhos melhor que eles próprios, éramos o quarto país com maior taxa de abandono escolar precoce e estávamos em penúltimo lugar no que à % da população com ensino superior entre os 25-64 anos.
É assim tão difícil apresentar um programa de reformas, com objectivos e ambição, e definir uma estratégia de comunicação, inteligível e mobilizadora, que solucione estes problemas?
Insisto: há 400 mil novos pobres em Portugal. A classe média, essa, vive no fio da navalha. Se não se lhes consegue endereçar uma palavra de esperança, se não se consegue projectar um futuro de liberdade e prosperidade, não se espantem que não haja sondagem que não confirme o PS no poder. Porque, como diz o povo, para melhor está bem, está bem, para pior já basta assim. A direita, olhando as diatribes do PS, está preocupada com a democracia que se extingue e com a liberdade que se vai? Ora, pessoas pobres são pessoas menos livres, pessoas menos livres são pessoas limitadas no exercício da cidadania. E países com uma fatia significativa da sua população nestas circunstâncias são países onde a democracia dificilmente se cumpre. Se têm dúvidas, sigam as causas e proponham soluções.
Enquanto isto, cumpro as recomendações dos altos dignitários da Nação: foco-me no futebol. Mas, já agora, já que estamos no pão e circo, recordo-me de uma campanha publicitária de apoio à nossa selecção no Euro 2004, com música dos Da Weasel e canto, na esperança que o PSD e o CDS, se a sua sonolência não for comatosa, me ouçam: menos ais, menos ais, menos ais; quero muito mais!
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