Opinião

A nação e as forças armadas

Não devemos ficar pela discussão acerca do modelo de cúpula do sistema militar, importante numa lógica de distribuição de poderes, mas apostar na modernização, nos meios e na legitimidade das nossas forças armadas

Acabámos de assinalar mais um aniversário da nação portuguesa, mas em tempos de voragem mediática, alimentada por todos os medos, o tema da defesa, da reforma e melhoria da eficácia das nossas forças armadas, que tanta polémica alimentava ainda há alguns dias, parece saído de outro século.

Infelizmente, não vivemos num mundo de anjos, onde reine a prudência e a temperança. Também temos os nossos demónios, com o seu espírito de risco e aventura. E se, para refrear estes demónios o Direito será suficiente, já para os assustar, para os conter, no limite da racionalidade, precisaremos eternamente da força. Isto é, apesar de vivermos em paz, na verdade, continuamos rodeados da guerra ou da sua perspetiva, por todos os lados.

É certo que, hoje em dia, pelo menos em boa parte da Europa, somos todos de Vénus (para usar a expressão cunhada por Robert Kagan, pretendendo distinguir o pacifismo cosmopolita dos estados europeus-Vénus, do nacionalismo belicista dos americanos-Marte). O mesmo é dizer que a queda do muro de Berlim e alguns anos de paz, com Estado social, fizeram muitos europeus crer na desnecessidade da defesa da Europa e colocar em crise a própria existência de forças armadas.

Acontece que, nem os homens deixaram de ser violentos, nem as instituições civis, a democracia, os direitos fundamentais, a economia de mercado, são suficientemente fortes para afastarem de vez o espectro da guerra e o eventual uso da força. Nunca poderemos prescindir de um Leviatã que garanta essa mesma força.

É, pois, do equilíbrio entre anjos e demónios, do balanceamento entre o Direito e a força, que se faz uma nação. E as forças armadas, na dimensão adequada e dentro dos limites constitucionais do Estado de Direito, ainda são o suporte simbólico desse mesmo equilíbrio.

Ora, é também a consciência deste facto que exige maior responsabilidade. Isto é, não podemos esquecer o equilíbrio entre o pilar da defesa da nação e o modo como lhe damos dignidade institucional ou reconhecimento popular. Não podemos correr o risco de, com uma qualquer atitude menos atenta, displicente ou ainda por qualquer preconceito ideológico, desfazer esse equilíbrio e tudo o que dele depende.

Já basta o conhecido desgaste das instituições representativas da democracia, com a perda de legitimidade de parlamentos, governos e partidos políticos. Já basta o desgaste doutras funções da soberania de cujo bom funcionamento, independência e autonomia, depende a nossa liberdade e que estão também a ser abaladas perante o sempre volúvel tribunal da opinião pública. É fundamental que não deixemos também desgastar o prestígio da instituição militar como garante da integridade do Estado.

E não se veja nestas palavras qualquer saudosismo militarista ou qualquer gosto secreto pela teoria da subversão militar, golpe de estado ou estado de exceção cesarista.

Mas não tenhamos ilusões, o equilíbrio existente até hoje entre os diversos pilares da nação supõe uma relação de respeito, dignidade, autonomia técnica e tática das forças armadas, em relação ao poder político democraticamente eleito.

Haja, pois, sensibilidade para garantir que as nossas forças armadas, não constituindo um mundo à parte dentro do país, também não podem ser tratadas como mais um departamento do Estado social. Sem umas forças armadas coesas, capazes, motivadas e respeitadas pelo povo e seus representantes, não haverá nem uma democracia plena, nem uma economia próspera, nem uma sociedade solidária.

Este não é, com toda a certeza, um assunto consensual, sobretudo quando ainda estamos em pandemia e a famosa “bazuca financeira” não contempla neste domínio, com exceção de um centro de controlo naval, qualquer investimento significativo. Mas é um tema estruturante, num novo tempo em que, precisamente, por toda a Europa se volta a pensar estrategicamente a segurança e a defesa, os seus meios e capacidades, as suas dimensões humanas, tecnológicas e logísticas.

A recente cimeira da NATO, com a presença de Joe Biden, aí esteve para lembrar que as ameaças ainda não desparecem, antes pelo contrário, cada vez ensombram mais o espaço europeu.

E a força simbólica das nossas forças armadas, como fator de agregação nacional, não poderia também estar mais presente na veneração, quase mítica, do Vice-Almirante que está a conduzir, e bem, o processo de vacinação em curso.

Ou seja, e este é o meu ponto. Num tema, aparentemente tão ultrapassado pela espuma dos dias, não devemos ficar pela discussão acerca do modelo de cúpula do sistema, importante numa lógica de distribuição de poderes, mas apostar na modernização, nos meios e na legitimidade das nossas forças armadas.

Sendo nós ainda anões, aos ombros dos nossos mais de oitocentos anos de história, respeitemos as forças armadas, evitando, ao mesmo tempo, quaisquer derivas nacionalistas … a bem da nação!

José Conde Rodrigues, advogado, membro do Grupo de Reflexão em Estratégia e Segurança

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