Opinião

O Russian Gate da Câmara Municipal de Lisboa e a Proteção dos Nossos Dados

O Russian Gate da Câmara Municipal de Lisboa e a Proteção dos Nossos Dados

Ana Paula Dourado

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Portugal será condenado pelo envio – e provavelmente, pelo armazenamento e tratamento – dos dados de cidadãos estrangeiros, exercendo o direito de manifestação, às suas embaixadas e países de origem. Nós, contribuintes, pagaremos a condenação

A recolha, tratamento, armazenamento e disseminação dos nossos dados pessoais (incluindo, nome, endereço postal ou de e-mail, telefone) é uma interferência no direito à vida privada e em regra proibida em Portugal e na União Europeia. Só pode ser feita em contextos excecionais, “se necessário numa sociedade democrática”, e com fronteiras bem definidas.

Opiniões políticas ou participação sindical fazem parte dos dados considerados sensíveis pela legislação europeia de proteção de dados (a par da origem racial, convicções religiosas e do comportamento sexual). Em caso de manifestações públicas, o risco para a segurança coletiva é uma das situações excecionais que justificam a recolha de dados. Esse risco pode estar relacionado com movimentos extremistas. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem jurisprudência na matéria, condenando Estados violadores das condições e limites de tais procedimentos.

Não é claro que uma qualquer manifestação política - de que foi exemplo a manifestação em frente à embaixada russa contra a detenção de Navalny, opositor ao regime de Putin – seja um risco para a segurança coletiva. Talvez os dados possam ser recolhidos como modo de prevenção, mas não podem ser armazenados caso não tenham sido cometidos crimes, muito menos por tempo indeterminado. E certamente não podem ser disseminados.

E que sabemos nós quanto à recolha, armazenamento, tratamento e disseminação dos nossos dados?

A propósito da notícia sobre o envio de dados pela Câmara Municipal de Lisboa para a Embaixada Russa, ficámos vagamente a saber que o direito à privacidade e à proteção da integridade física, bem como as liberdades fundamentais não são respeitados pela Câmara; que o Presidente da Câmara, nosso representante, nada tem a ver com isso. Ficámos a saber da existência de um departamento responsável pela recolha de dados em caso de avisos de manifestações; que o registo é partilhado com a polícia municipal, e esta só pode partilhá-lo com a polícia de segurança pública e com o Ministério da Administração Interna. Foi-nos dito que, desde 2018, este procedimento foi violado em 52 manifestações.

Os lesados – certamente muitos - devem reagir e levar o caso aos tribunais e em última análise ao TEDH. O Estado português será condenado.

Catt v Reino Unido, decidido pelo TEDH em janeiro de 2019, dá-nos uma orientação quanto à possibilidade de recolha e armazenamento de dados, no caso de exercermos o direito fundamental de manifestação. O queixoso, um ativista no “movimento paz” desde 1948 e regular participante em manifestações públicas desde então, foi detido duas vezes, mas nunca condenado. Em março de 2010, fez um pedido para saber se a polícia no Reino Unido tinha armazenado informação a seu respeito: segundo a lei, qualquer pessoa pode fazer esse pedido. Ficou a saber que havia 66 entradas com o seu nome, nos arquivos da polícia. Em agosto de 2010, pediu a eliminação de tais entradas do arquivo, e esse pedido foi negado em setembro do mesmo ano, sem justificação.

Recorreu aos tribunais no Reino Unido e por fim o caso chegou ao TEDH. O coordenador nacional da polícia adiantou três razões para justificar o armazenamento dos dados pessoais: permitir à polícia uma avaliação mais informada dos riscos e ameaças à ordem pública; investigar crimes e potenciais testemunhas e vítimas; estudar o comando, organização, táticas e métodos de grupos de manifestantes associados a violência. Estes critérios justificaram também a criação de uma base de dados relativa aos “extremistas domésticos” (indivíduos que atuam “fora do processo democrático”).

O Reino Unido foi condenado pelo TEDH. Embora o TEDH tenha reconhecido a “necessidade social” de recolha dos dados, entendeu que o armazenamento dos dados do queixoso foi desnecessário. Por outro lado as leis deviam, mas não estabeleciam um limite temporal para esse armazenamento.

Catt v Reino Unido ensina-nos muito: a recolha, tratamento manual ou automático, e armazenamento dos nossos dados pessoais, é em regra proibida; pode ser justificada para servir o interesse público (“de modo suficientemente relevante”), evitando a ocorrência de um perigo real ou a supressão de uma ofensa criminal específica; a base legal e os critérios usados pelas entidades nacionais legitimando a recolha dos dados pessoais devem ser claros; tem de ser justificada a necessidade de tratamento e armazenamento dos dados; os dados só podem manter-se nos arquivos se necessário; não podem ser transmitidos a terceiros não abrangidos pela soberania estadual, pois não é possível verificar o respeito pelas condições de tratamento, armazenamento e utilização; a lei tem de estabelecer prazos – periódicos - de reavaliação sobre a necessidade de guardar os dados pessoais; e exigir a eliminação desses dados, caso não haja razões para mantê-los, nomeadamente se os indivíduos cujos dados foram recolhidos não forem suspeitos de atividade criminosa; devem ser tomadas medidas claras para apagar dados pessoais desnecessários; deve existir um sistema independente que garanta a reavaliação dos dados. Esta legislação tem de ser clara e acessível a cada um de nós, para podermos ter proteção legal contra arbitrariedades.

Portugal será condenado pelo envio – e provavelmente, pelo armazenamento e tratamento – dos dados de cidadãos estrangeiros, exercendo o direito de manifestação, às suas embaixadas e países de origem. Nós, contribuintes, pagaremos a condenação. Infelizmente, nada podemos fazer quanto a eventuais violações de direitos humanos nos países de origem dos manifestantes. E este peso que sentimos profundamente, os nossos representantes não o sentem, nem assumem as responsabilidades políticas evidentes.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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