Opinião

O mundo continua a rodar

O mundo continua a rodar

Carmo Afonso

Advogada

Viver em exceção é a experiência de uma vida. Aconteceu-nos. Mas em que parte se chegará à conclusão que já não é exceção nenhuma mas sim uma nova vida? E, se se trata de uma nova vida, quando é que as regras passarão a refletir as necessidades das pessoas em vez de refletirem um pedido de sacrifícios só concebível se temporário?

A maior parte dos aviões comerciais tem um padrão de velocidades idêntico. De um modo geral descolam com uma velocidade entre os duzentos e os duzentos e oitenta quilómetros por hora e, após a descolagem, aumentam progressivamente essa velocidade. Quando atingem uma altura entre os nove mil e cem e os doze mil e quatrocentos metros, no chamado voo de cruzeiro, navegam a cerca de oitocentos e cinquenta quilómetros por hora. A baixa densidade do ar permite que se atinja maior velocidade gastando menos combustível.

Quem está dentro de um avião, a menos que esteja na cabine, não tem grande perceção da velocidade. Parece lenta, e até suave, a deslocação. A aproximação e o afastamento de qualquer ponto, que se identifica lá em baixo, é demorada. O mesmo em relação às nuvens. Nada indicia a velocidade a que se vai.

Quem observa o trajeto do avião no ar também não fica com a ideia dos tais oitocentos e cinquenta quilómetros por hora. Esta perceção altera-se se observarmos o trajeto de um avião a partir de um carro em andamento. Se o carro se desloca na mesma direção do avião, e para quem está no carro, a velocidade do avião é finalmente visível. O efeito é o mesmo que resultava de olhar para um vídeo depois de carregar nos botões fast forward e play ao mesmo tempo. Coisas de outros tempos.

O oposto também acontece. Se o carro se desloca na direção oposta à do avião, e para quem está no carro, o avião aparenta estar parado no ar. É preciso continuar a andar para manter a ilusão.

Na sexta-feira lia o fecho da semana nos jornais e deparei-me com várias congratulações acerca do processo de vacinação e com a confiança no futuro e no regresso à vida dita normal. Isto nos jornais portugueses. Ao mesmo tempo, nos jornais ingleses, a preocupação com a iminência de uma terceira vaga e com a nova variante, a Delta, do coronavírus. Alguma informação nova acerca desta variante e que apontava para uma maior perigosidade, um acréscimo percentual na sua transmissibilidade, a possível ineficácia das vacinas existentes e a sua disseminação no Reino Unido. Também alguma informação a apontar em sentido inverso.

Foi um dia interessante de notícias: a explicação da estranha saída de Portugal da lista verde do Reino Unido em simultâneo com as notícias da perigosidade da situação no próprio Reino Unido e ainda algumas acusações a Boris Johnson por estar a esconder informação científica importante e a pôr em perigo o país.

Ou seja, foi um dia normal de pandemia. Nada é estranho. Ler informação contraditória diariamente num tema que já demonstrou ter a importância de ditar as regras tornou-se habitual. É a evolução da pandemia que vai definir o dia a dia, e isto é válido mesmo para quem não acredita que exista uma, mas nada é certo no presente e ainda menos no futuro.

A pandemia evolui a uma velocidade alucinante. Nenhuma expectativa se cumpre ou se mantém. As notícias, mesmo as sérias, não são inteiramente confiáveis. A verdade é que existem verdadeiros sistemas de informação que fundamentam, alguns muito bem, qualquer posição sobre o coronavírus. Esses sistemas alimentam teorias, fornecem factos, comparam situações, chegam a conclusões, sustentam previsões – para todos os gostos. Tudo é defensável e tudo pode ser defendido com recurso às melhores conclusões de investigadores de grandes universidades.

A informação disponível tem uma utilidade semelhante à da jurisprudência dos tribunais superiores; é quase sempre possível encontrar uma decisão que sustente uma interpretação da lei favorável ao problema que tentamos resolver.

Temos toda a informação ao nosso alcance e a partir do exato sítio onde estivermos. Temos informação que sustenta uma coisa e informação que sustenta o seu contrário. Não é preciso ir a lado nenhum. Desse mesmo sítio podemos também trabalhar, descontrair, conviver, conhecer pessoas, fazer compras. Existe uma possibilidade de infinito sem nos movimentarmos. Esta possibilidade e uma pandemia - que recomenda que fiquemos em casa ou que, pelo menos, reduzamos os nossos contactos, deslocações e horários - são a causa da nossa paralisação. Estamos parados, prostrados e infinitamente cansados. A casa transformou-se no local de trabalho, de descanso e de lazer. Acontece que desta imobilidade vem cada vez mais cansaço e uma menor capacidade para agir. O mais profundo de cada um não deveria ser visitado todos os dias. Mas tem sido. Esse mais profundo pode não ser uma salvação mas antes uma condenação das pessoas ao seu próprio interior.

A pandemia virou tudo às avessas não tanto por ter invertido a direção que seguíamos mas por ter acelerado a velocidade a que nos aproximamos de um destino que estava traçado: o do isolamento, do afastamento físico, do convívio sem presença física, o de encarar o outro como uma potencial ameaça seja ela sexual ou viral, o da dependência do virtual.

O mundo mudou.

A possibilidade de, daqui a meia dúzia de anos, ainda andarmos à luta contra este vírus enfiados nas gaiolas de uma existência condicionada, deve ser encarada. Enquanto a luta subsiste tudo o resto está em segundo plano, até as outras doenças. Somos convidados a acreditar que se irá resolver num determinado prazo e de uma determinada forma mas há sempre uma novidade, uma variante, na linha do horizonte, que acaba por determinar que vamos ficar assim mais um algum tempo. Pode não ser uma fase.

Acontece aqui o mesmo que nos filmes de ação: há uma grande convulsão seguida de uma luta. A situação parece finalmente ultrapassada mas, quando os heróis vão finalmente descontrair, surge um subtil sinal a indicar que o caso afinal não ficou resolvido.

Também a transformação do vírus serve o padrão das sequelas dos filmes de ação. O vírus sofre mutações mas aparentemente elas são sempre no sentido do seu agravamento: cada vez mais resistente, mais mortífero e contagioso.

As pessoas mudaram também.

O aumento dos casos de depressão deveria fazer parte das contagens da Direção Geral de Saúde e esses números deveriam ser divulgados diariamente, concelho a concelho, freguesia a freguesia. O desvalor do bem-estar emocional das pessoas e a hipervalorização da sua saúde biológica, sobretudo no que diz respeito à Covid-19, teve as suas consequências. As pessoas são encaradas como portadoras de vírus ou não portadoras, vacinadas ou não vacinadas, imunes ou não imunes, aceitam essa redução e tendem a esquecer aquilo que é satisfatório para elas.

Uma das primeiras coisas que ficaram determinadas foi a distinção entre aquilo que é essencial e o que não é. Do estabelecimento desses critérios resultou que por exemplo a cultura, o lazer e a dança, não estão na primeira linha de prioridades. Esse entendimento prejudicou economicamente alguns sectores de atividade, promotores, agentes culturais e, de um modo geral, todos os profissionais dessas áreas e de uma forma que ficará para o futuro como excessiva. Mas as consequências vão muito para além disso: em que condições emocionais e psicológicas se encontram todos aqueles que têm a consciência que precisam de dançar para estar em equilíbrio? E o que é feito da comunidade formada por aqueles que o faziam como ritual coletivo? Quando é que passamos da linha básica e conservadora que não valoriza as pessoas na sua integridade e que deixa cair o que é fundamental ao primeiro aperto? Se se reconhece que as celebrações religiosas são vitais para alguns, e admito que são, porque não se faz o mesmo com as restantes celebrações?

É precisamente no reconhecimento da importância das artes, da cultura, do bem-estar emocional e, já agora, da saúde mental, que podemos medir o nível de civilização de um país. Onde é que a avaliação desses critérios nos coloca? Queremos ser bem considerados internacionalmente pela nossa performance a combater a pandemia. Seria bom que incluíssemos mais uns objetivos nessa ambição.

Viver em exceção é a experiência de uma vida. Aconteceu-nos. Mas em que parte se chegará à conclusão que já não é exceção nenhuma mas sim uma nova vida? E, se se trata de uma nova vida, quando é que as regras passarão a refletir as necessidades das pessoas em vez de refletirem um pedido de sacrifícios só concebível se temporário?

Estamos muito parados, à espera de um alívio que continua a ser adiado. Temos, como os tripulantes do carro que circula em direção oposta à do avião, a perceção de que o mundo está suspenso. É das frases mais ouvidas: “temos as vidas suspensas”. Isto não é verdade. O tempo passou efetivamente por nós. As nossas vidas, ou o mundo, não estão de todo parados. Vivemos uma profunda transformação coletiva, social, económica, política e, sim, também uma transformação individual. A velocidade a que isto aconteceu foi parecida à que os passageiros do carro, que circula na mesma direção do avião, percecionam quando o observam.

O mundo continua mesmo a rodar.

Este domingo os jornais ingleses noticiaram uma declaração de Tony Blair em que este dizia ter chegado a hora de distinguir entre vacinados e não vacinados e de criar as condições para que os vacinados possam viver a sua vida livres e saudáveis. A história ensinou a desconfiar das reflexões de Tony Blair.

O mundo continua a rodar como na música dos Massive Atack, Hymn of the big wheel:

“The big wheel keeps on turning
On a simple line, day by day
The Earth spins on its axis
One man struggle while another relaxes”.

Recordar, já agora, o que disse Robert Del Naja quando lhe perguntaram qual o significado dessa música: “São só perguntas, não oferecemos alternativas”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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