Opinião

O bem comum contra a injustiça vacinal: um apelo urgente

“Só vamos estar mesmo a salvo quando todos estiverem a salvo no mundo” e por isso “todo este nacionalismo de vacinas é irracional e errado. As partes só ganham quando o mundo estiver a salvo”. As palavras são da cientista Maria Manuel Mota, estudiosa da malária, diretora do Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes e Prémio Pessoa 2013, que esteve à conversa com Bernardo Mendonça no Expresso.

Não é o primeiro nem será o último alerta contra o “apartheid das vacinas” que vai tomando forma no mundo. Trata-se de uma “catástrofe moral” para a qual, desde fevereiro, o diretor da Organização Mundial da Saúde vem chamando a atenção, visível no facto de dois terços das vacinas produzidas se destinarem aos países mais ricos do mundo, onde vive apenas 20% da população mundial. Esta nova forma de injustiça e de desigualdade expõe a irracionalidade de um modelo de vacinação assente na disputa entre nações e na subjugação ao mercado e aos interesses financeiros e industriais. Do acesso às vacinas, transformadas no novo “ouro líquido” do século XXI, como lhe chamou Boaventura Sousa Santos, depende em grande medida o nosso futuro. Só que a imunização da população mundial enfrenta enormes obstáculos: as desigualdades dentro dos países e entre países; a resistência da grande indústria financeira que não quer renunciar aos seus direitos às patentes, mesmo quando incumpre os contratos, como já aconteceu na Europa; e a inação dos poderes políticos que não lançam mão dos poderes que têm para, em nome da defesa da saúde como bem comum, garantirem a utilização de toda a capacidade de produção disponível. A suspensão temporária dos direitos de propriedade industrial sobre as patentes da vacina para a Covid-19 é cada vez mais consensual entre cientistas, instituições de saúde pública e organizações internacionais. Mas os poderes do mundo continuam a não querer. Em Portugal não tem sido diferente.

É contra esta resistência e irracionalidade que leio o apelo lançado esta semana por José Aranda da Silva, primeiro presidente do Infarmed e ex-membro da Agência Europeia do Medicamento, subscrito por um conjunto muitíssimo alargado de personalidades. “Controlar a pandemia e as suas consequências implica, para além das consensuais medidas de contenção da infeção, a mobilização de apoio social aos mais afetados pela crise e a utilização em massa das vacinas contra a Covid-19”, lê-se no documento, que lembra que “existem na Europa cerca de oitenta fábricas de vacinas e, de acordo com sítio na internet vaccineseurope.eu, que agrupa diversos produtores de vacinas, em 2019 eram aqui produzidas para o mercado mundial 76% das vacinas (13% eram produzidas nos Estados Unidos, 8% na Ásia e 3% no resto do mundo). Perante estes dados, é incompreensível a falta de vacinas hoje observadas em Portugal e na Europa, que colocaram os cidadãos europeus em situação de subalternidade em relação aos produtores de vacinas.”

O apelo vem dar eco ao que já havia dito António Guterres, na qualidade de secretário-geral da ONU, e o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, para quem “perante a situação de catástrofe devíamos usar todas as ferramentas para aumentar a produção, incluindo o licenciamento e a transferência de tecnologia e isenções de propriedade industrial. Se não é agora é quando?”. Os instrumentos legais nacionais e europeus para garantir a produção de vacinas já existem, enquadrados pela situação de catástrofe. Trata-se agora de os utilizar para obrigar à produção de vacinas em locais, públicos e privados, que não sejam as fábricas detentoras da patente, o que é essencial para garantir também a velocidade do processo. Nada de especialmente inovador, aliás. Os Estados Unidos já o fizeram várias vezes ao longo dos últimos anos. Afinal de contas, se o desenvolvimento das vacinas só foi possível com uma quantidade colossal de financiamento público (quer na investigação fundamental, quer na aplicação da tecnologia mRNA a estas vacinas, quer na cobertura do risco das empresas), por que razão deveríamos ficar agora reféns de interesses privados, condenado por essa razão centenas de milhares de pessoas à infeção e a uma morte evitável?

O governo português, que ocupa nestes meses a presidência do Conselho de Ministros da União Europeia, tem a possibilidade e a obrigação de fazer a diferença. Para isso, deve imunizar-se relativamente ao lóbi da grande indústria e ouvir as vozes de quem luta pela humanidade. Eis o momento de um pequeno país como o nosso mostrar a grandeza de que é capaz. Só a produção massiva de vacinas e a sua distribuição igualitária pelo mundo pode permitir atingir uma imunidade de grupo global. Nenhum de nós, por mais que ache que habita o privilégio de uma bolha territorial ou de classe, estará protegido sem essa imunidade.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate