O sofá em que eu estava sentado ficava mesmo em frente ao que o Jorge ocupava. Conversávamos. Íamos jantar na casa onde eu então vivia. O Jorge interrompeu, mudou de assunto, pegou num sobrescrito, tirou uns papéis e mostrou-os ao casal de médicos amigos que estavam por detrás dele, debruçados sobre as costas do sofá. Pediu-lhes opinião sobre os resultados dos exames feitos a um ouvido, que recebera horas antes.
Felizmente estava de costas para eles e não viu a reação que ambos tiveram. Eu vi. As expressões foram tais, a necessidade de disfarçar tamanha, que percebi logo que não seria nada de bom. Disseram-lhe apenas que devia ir rapidamente a um especialista. Não me atrevi a perguntar-lhes o que tinham visto. O jantar correu animado – calculo que para todos menos para os dois médicos. Uns tempos depois ligou a dizer-me que tinha um cancro, que ia desaparecer até se curar e que depois voltaria. Voltou. E cheio de amor pela vida, sempre a combinar jantaradas, onde era frugal, e a falar de bons vinhos, que não bebia. Saciava-se com o convívio e com a partilha.
Conheci o Jorge Coelho há 40 anos. Acompanhava eu, jornalista, o que então se passava no sector dos transportes; era ele chefe de gabinete de Murteira Nabo. Nasceu uma relação profissional, que sempre nos impediu de nos tratarmos por tu, mesmo quando ele deixou de ser fonte e motivo das minhas notícias. Há 30 anos passámos a ser amigos. Pouco depois, a grandes amigos. Foi o único que fiz entre os políticos, em cuja casa jantava e que em minha casa jantava. Os meus camaradas sabiam-no, os companheiros do Jorge também.
Criticavam-no por se dizer meu amigo, sobretudo depois do que o Expresso escreveu sobre o caso Sócrates, estava eu na direção do jornal. “Dás-te com cada um”, disseram-lhe, contou-me, enquanto mostrava indiferença por quem não acreditava na liberdade de informar.
Pelo meu lado, eu ouvia dizer coisas e comentários sobre “o Coelho”, sobre “o Coelhone”, que me arrepiavam. Não o conheciam. Diziam-no apenas um homem do aparelho, carreirista, manobrista, o angariador de fundos, o bombeiro de serviço, o manipulador. Ficou conhecido como Bulldozer, gozam-no por lhe ter saído um “há-dem” num discurso em S. Bento, por ter afirmado que quem se mete com o PS leva. Não lhe perdoavam o sucesso político e empresarial. Talvez por aquele sentimento mesquinho que impede de ser doutor quem não é filho de doutores. Ele nascera em Contenças, andara a vender queijos em feiras e não frequentara os cafés da Avenida de Roma. E sorria a toda a gente que o interpelava na rua.
Quando eu dizia que não acreditava, mas que investigassem, recebia de volta um sorriso de complacência. Nada lhe encontraram, a ele que nem faturas pedia quando dividia as contas dos nossos encontros de amigos, para que houvesse a mínima dúvida de que não iriam para a contabilidade da empresa. Chama-se Pratos da Discórdia a tertúlia que ele animava, onde resolvíamos os problemas do mundo, falávamos de livros e de música e acabávamos na má língua.
Um dia o Expresso quis saber como fora paga a sisa de um andar que comprara – onde de resto eu já tinha estado. Um jornalista da casa andou por lá a fazer perguntas. O Jorge nada me disse – aliás nunca me sugeriu que escrevesse o que quer que fosse, sobre ele ou sobre qualquer outra coisa. Nada. Nunca. E continuámos amigos. Talvez eu ainda mais amigo, pelo caráter que acabara de reafirmar.
Anos antes, quando ele estava na Administração de Macau, mandou para o Expresso um convite para eu ir ao território. Primeiro aceitei, depois recusei, porque entretanto surgira o caso do fax para o governador. O Jorge não descansou, e anos depois arranjou maneira de ser a TDM a convidar-me para lá ir falar sobre jornalismo. Fiz de conta que não percebi que andava ali o dedo dele, ele nunca mo disse. Era assim, não cobrava.
Nuno Artur Silva veio agora testemunhar como Jorge Coelho foi intransigente na defesa da liberdade de informar, quando em causa estiveram pressões para acabar com o "Contra-Informação" – o boneco do zurzido “Coelhone” permaneceu no escritório do inspirador até a borracha ceder – e quando Herman José também teve problemas com a célebre cena da Última Ceia.
Jorge Coelho não era truculento. Jorge Coelho não era um operacional. Jorge Coelho não era o manobrador. Era um negociador, com uma enorme capacidade para encontrar consensos e soluções. Esteve nos encontros com o PCP, nomeadamente para a Câmara de Lisboa, e com Jorge Sampaio, pelo PS, quando Mário Soares procurava outro candidato. E era agressivo e Bulldozer quando no PS sentiam que era necessário sê-lo e não havia “mais ninguém que se chegasse à frente”, como costumava dizer. Fala-se dele a propósito da ponte de Entre-os-Rios – onde deu uma prova de dignidade que tarda a ser seguida –, mas esquecem-se do que fez pela TAP, na modernização administrativa do país, na segurança pública. Percebo: é mais picante falar no aparelhista. Mas injusto.
Fez o que pôde pelo PS e ainda há poucos dias me dizia que seria socialista até ao fim. Contou-me que deixou a extrema-esquerda quando, sentado num muro da Gulbenkian, ao lado da Cecília, sua mulher, assistia ao assalto à Embaixada de Espanha. “O radicalismo já lá vai. Foram outros tempos. Ainda bem que perdemos”, repetia.
É verdade: nem sempre dizia tudo o que pensava. Principalmente quando sentia que torná-lo público seria nefasto para o seu partido. Não sei se foi por isso que deixou a "Circulatura do Quadrado". Sei que nunca quis andar em bicos de pés, que quando queria ir mais longe não disfarçava. Prezava muito estar confortável consigo. Sei que gostava de ajudar, como estava a fazer, discreto, com a candidatura de Fernando Medina.
Pelo PS, tudo. Quase tanto como pela família – o almoço de domingo com a filha, genro e netos era completamente sagrado; tanto como pelos amigos. E considerava amigos pessoas que eu achava não lhe merecerem a amizade. Justificava-os até ao limite.
Jorge dava mais do que recebia. Lobo Xavier reafirmou-o há dias. Apresentassem-lhe um bom projeto, que ele tudo faria para ajudar a concretizar.
Volto a escrever hoje sobre Jorge Coelho. É a segunda vez, desde que passámos a ser amigos (a outra foi um Altos e Baixos, no Expresso, quando se demitiu do Governo). Faço-o – e é o amigo que aqui está, não o jornalista – porque o Jorge Coelho que nos foi relatado ao longo de anos, e que agora tanta gente diz ter conhecido bem, não é aquele com quem privei. Atormentavam-no as injustiças, entre elas a pobreza, e nunca o ouvi queixar-se de não lhe reconhecer outros méritos. Ele sabia o Mundo que queria construir e tinha ideias sobre como lá chegar. Nem agora se esquecem de dizer que foi funcionário publico por cunha de um ministro conterrâneo ou que chegou a chefe de gabinete de um secretário de Estado por ser primo da mulher do governante.
Ainda acham que lhe faltavam méritos? Eu não. E isso revolta-me.