Opinião

A Morte e a Vida e o Direito aos Cuidados Paliativos em Portugal

A Morte e a Vida e o Direito aos Cuidados Paliativos em Portugal
A Morte e a Vida e o Direito aos Cuidados Paliativos em Portugal

Ana Paula Dourado

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Precisamos de nos confrontar com as questões essenciais colocadas pela finitude da vida, sendo a vida um continuar a viver, sem oposição à morte

A morte de Ivan Iliitch (Tolstoi, 1886) é apresentada como a última fase da sua vida infeliz (uma morte viva), as reações à sua morte ilustram o automatismo das convenções sociais, a hipocrisia e oportunismo dos que ficam, os instantes de perceção da condição humana (““três dias de sofrimento terrível, depois a morte. Isto pode acontecer também a mim em qualquer momento” ... uma pontada de medo. Passageira...a ele não devia nem podia acontecer”).

Ao longo do século XX, a morte foi afastada para longe do olhar, o luto é vivido em isolamento por quem fica, a voz dos mortos e as fronteiras incertas do humano/não humano em Homero, Dante e Faulkner, foram substituídos pela sacralização da vida ou o seu desprezo.

Nos últimos quarenta anos aumentou o interesse pela morte, deixou de ser tabu, José Cardoso Pires partilhou a sua experiência de despersonalização, cenas de mortes hediondas são exibidas publicamente, também na arte, faz-se publicidade à morte nas redes sociais. No entanto, a vivência com a morte é fortuita, o encontro com a morte real e a dos nossos mortos é largado à distância.

Precisamos de nos confrontar com as questões essenciais colocadas pela finitude da vida, sendo a vida um continuar a viver, sem oposição à morte.

O reconhecimento dos cuidados paliativos, dirigidos à prevenção e alívio do sofrimento em caso de doença grave ou incurável, como um direito humano consagrado pelo Conselho da Europa na sua Resolução 2249, é uma conquista basilar do direito à vida e do seu sentido. Quando a medicina não consegue prolongar a vida, o sofrimento já não é entendido como inevitável, não é parte da condição humana.

A lei de bases dos cuidados paliativos define-os como cuidados ativos, coordenados e globais, prestados por unidades e equipas específicas, dirigidos à prevenção e alívio do sofrimento e, em geral, à melhoria do bem-estar do doente e da família. O sofrimento, físico, psicológico, social e espiritual, está associado, na lei, a doença grave ou incurável, em fase avançada e progressiva. Os cuidados paliativos podem ser prestados em internamento ou no domicílio e a necessidade destes cuidados deve ser identificada precocemente.

Desde 2017, a Organização Mundial da Saúde (OMS) insere os cuidados paliativos na cobertura universal da saúde, e os fármacos e os recursos próprios constituem um dos pilares dos cuidados paliativos. O acesso universal e equitativo, a qualidade dos serviços, a proteção sem risco financeiro são objetivos da OMS e estão previstas na lei de bases.

Segundo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o acesso aos cuidados paliativos em tempo útil é essencial para respeitar a autonomia individual, e permitir ao sujeito recusar tratamentos agressivos e ter liberdade para escolher estratégicas alternativas.

A evolução recente quanto ao entendimento de cuidados paliativos, deixou de centrá-lo na existência de uma doença terminal, de semanas ou de meses. Associa-o agora ao tratamento de uma doença progressiva crónica e avançada, com prognóstico de vida limitado. Num sentido mais restritivo, talvez mais intuitivo, os cuidados paliativos têm início quando o prolongamento da vida por meios médicos, passou a ser secundário, quando o retorno a uma ordem natural de autonomia, deixa de ser possível.

O último Relatório do Observatório Português de Cuidados Paliativos (ROPCP), referente ao ano de 2018, parte do conceito amplo de cuidados paliativos, e mostra a insuficiência da cobertura em cuidados paliativos e a escassez de recursos:

a população portuguesa com necessidade de cuidados paliativos (adulta e em idade pediátrica) é estimada, com base em dados obtidos por equipas públicas e privadas de cuidados paliativos (taxas de resposta acima dos 50%), em 110,290 pessoas no total;

a taxa de acessibilidade nacional, em relação às estimativas, é de 23,3%, com variações significativas a nível do território;

a evolução da pirâmide etária demonstra uma população envelhecida admitida aos cuidados paliativos (com maior concentração nas faixas etárias dos 65 aos 89 anos);

80,7% dos doentes admitidos apresentam doença oncológica, 16,8% doença não oncológica e 2,5% doenças mistas;

A carga horária semanal por doente varia muito por classe profissional. Na medicina, uma mediana de 44,5 minutos; enfermagem, 82,5 minutos; psicologia, 88,5 minutos; assistência social, 10 minutos (com grandes assimetrias a nível nacional);

O tempo de alocação semanal ao exercício de cuidados paliativos no serviço nacional de saúde, consoante as principais áreas profissionais é de 32% na medicina; 100% na enfermagem; 23% na psicologia; 29% nos serviços sociais (com grandes assimetrias a nível nacional);

A taxa de cobertura dos serviços de cuidados paliativos, segundo o método seguido pelo Observatório (de Connor e Goméz-Batiste), mostra um défice de 50% de camas a nível nacional e com assimetrias ao longo do território nacional;

As equipas comunitárias cobrem 32,55% da população adulta, e descontando as duas equipas oncológicas dos IPO de Lisboa e do Porto, a cobertura é de 25,61% da população portuguesa adulta.

A taxa de cobertura profissional da rede nacional de cuidados paliativos, em equivalente a tempo completo, e segundo o método Connor e Goméz-Batiste, é muito insuficiente: medicina, 14.1%, das necessidades; enfermagem, 10, 9% das necessidades; psicologia, 9% das necessidades; serviços sociais, 12% das necessidades.

O ROPCP aponta a falta de 425 médicos, de 2123 enfermeiros, de 178 psicólogos, de 173 assistentes sociais, tendo em conta o horário a tempo inteiro preconizado pelo serviço nacional de saúde. E recomenda a contratação de mais recursos, aumento do tempo dedicado aos cuidados paliativos, e um registo nacional de atividade assistencial paliativa e caracterização dos profissionais desta área. A escassez de cobertura profissional transforma um serviço especializado num serviço generalista.

Os dados do ROPCP são relativos a 2018. Em 2021, em situação pandémica, pelo menos três quartos dos portugueses (cerca de 82500 em 2018) que necessitam de cuidados paliativos, não os receberão. Enquanto o parlamento português discute a morte medicamente assistida, e a população portuguesa envelhece a passos largos, as entidades públicas decisoras deveriam prestar atenção a estes números, libertar os hospitais dos cuidados paliativos, alargar os cuidados paliativos comunitários, e seguir as recomendações do Observatório.

“Enquanto agonizo, a mulher com os olhos de cão não fecha os meus olhos enquanto desço ao Hades” (Agamenon para Odisseu no Livro 11 da Odisseia).

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