Hoje devemos assinalar a triste efeméride de um ano passado desde a morte de Ihor Homeniuk no aeroporto
Antes de ser assassinado, Ilhor foi preso, sem ser suspeito de qualquer crime ou por razões de segurança, mas tão só por suspeita de irregularidade documental. Por talvez lhe faltar um papel. Mas um ano volvido, Portugal continua a prender pessoas pelo simples facto de quererem trabalhar em Portugal, mas não terem visto de trabalho.
Nos espaços de detenção dos aeroportos portugueses não ficam presos apenas cidadãos estrangeiros suspeitos de crime ou que colocam em causa a segurança nacional, mas sobretudo pessoas que a única irregularidade que cometeram foi a de quererem trabalhar em Portugal apesar de não terem um visto de trabalho emitido por uma embaixada portuguesa. Em 2019, 89% do total de 4.995 recusas de entrada foram por falta de visto de trabalho, das quais 84% aplicadas a cidadãos lusófonos (79,4% brasileiros e 4% angolanos).
Trata-se verdadeiramente de uma prisão. As pessoas são trancadas entre 4 paredes, à guarda de seguranças privados e polícias, privadas dos seus telemóveis e demais pertences e com comunicação com o exterior altamente limitada, até 60 dias.
Mas estas prisões são legais. Elas são legitimadas pela lei.
Contudo, a lei é imoral e desproporcional, pois priva a liberdade de pessoas que não cometeram nenhum crime. Isto não obstante tantos portugueses terem feito o mesmo em França, Alemanha, Luxemburgo, Canadá, EUA. O que diríamos sobre a prisão desses portugueses?
Além de imoral, esta lei é incoerente.
Incoerente porque a lei não oferece uma possibilidade séria de entrada legal aos migrantes trabalhadores. O visto de trabalho previsto na lei portuguesa exige que o cidadão estrangeiro tenha, ainda no seu país de origem, um contrato de trabalho ou promessa de contrato de trabalho com o empregador português, o que é, evidentemente, um regime desadequado à realidade social, laboral e empresarial.
Incoerente porque em vez de oferecer uma possibilidade séria de entrada legal, oferece apenas a possibilidade de correção da irregularidade, a posteriori, caso o imigrante já tenha contrato de trabalho e descontos feitos. Portanto, a lei portuguesa manda prender quem tenta trabalhar sem visto, não dá hipótese de obter esse visto, mas permite a regularização de quem se sujeitar à irregularidade e ao risco das respetivas consequências penais. A vida destas pessoas torna-se, assim, um jogo de sorte e azar. Podem ter sorte de o SEF não recusar a sua entrada e não as prender nos controlos de fronteira ou nos controlos no terreno nacional e acabarem por se regularizar. Depende do acaso de serem ou não identificadas pelo SEF.
A lei é também incoerente com a estratégia política declarada pelo Estado Português: Portugal precisa de dezenas de milhares de novos trabalhadores estrangeiros por ano, não só uma minoria especialmente qualificada.
Além de desproporcional e incoerente, esta lei é hipócrita, pois o Estado português sabe que a esmagadora maioria dos imigrantes trabalhadores em Portugal não entrou, não entra nem entrará (enquanto não se alterar o regime do visto de trabalho) regularmente. Em 2019, das 129.155 autorizações de residência emitidas, 26.716 foram concedidas a cidadãos que vieram procurar trabalho sem visto de trabalho, ao passo que com visto de trabalho foram menos de 1.700.
E ao mesmo tempo que a lei manda o SEF prender estas pessoas, manda as Finanças e Segurança Social aceitá-los como contribuintes fundamentais para a sustentabilidade do sistema de reformas e pensões e o financiamento de serviços públicos como o SNS. Ao invés do princípio de “no taxation without representation”, a lei portuguesa aplica o princípio: tributação sem prejuízo de prisão e deportação.
E embora sejam contribuintes, não são utentes do SNS, pois se precisarem de recorrer ao SNS terão de pagar o custo real das consultas (p.e. €50 a €100 por uma consulta geral).
Toda esta situação é inaceitável e só pode ser resolvida através do poder legislativo, pelo que lançámos uma petição pública para que o Governo e a Assembleia da República procedam às seguintes alterações legais:
- Fim da previsão legal de detenção por meras irregularidades administrativas de entrada;
- Criação de um visto para procura de trabalho (conforme previsto nas Grandes Opções do Plano 2020– 2023)
- Acesso a prestações sociais e SNS em iguais condições aos demais cidadãos durante o processo de regularização.
Foi há um ano o último dia de vida do imigrante ucraniano Ihor Homeniuk, que dia 12 de março foi assassinado por asfixia e espancamento no aeroporto de Lisboa. Ihor não cometeu um crime, Ihor não ameaçou a segurança do país, Ihor tentou uma vida melhor em Portugal e foi detido por suspeita de irregularidade documental, assim que aterrou em território nacional. A lei continua sem oferecer a possibilidade real de entrada legal aos migrantes trabalhadores. É incoerente e hipócrita e por isso há que ser mudada.
* André Costa Jorge é diretor-geral do Serviço Jesuíta aos Refugiados