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Opinião

Linhas muito tortas

Linhas muito tortas

Carmo Afonso

Advogada

A luta antifascista tem tantos pais e mães que está desamparada. Está órfã. Porque de repente a esquerda delira com Mayan? Será porque lhe acha graça? Nenhuma. A esquerda antifascista delira com quem conseguir malhar no Ventura. Mayan conseguiu. Isto é mais grave do que parece. Se a direita está mergulhada numa crise profunda, seria bom que a esquerda se aguentasse.

É tarde. Nunca comecei tão tarde a escrever. É mais que tarde, é muito em cima.

Adiam-se as coisas que não se quer fazer. Mas também se adiam aquelas que se quer muito fazer mas que vão ser difíceis. Esta dói.

Estamos na recta final da corrida presidencial. Parece que a eleição do Presidente está garantida, e isto vale o que vale, pelo que o grande suspense está em saber quem ficará em segundo lugar. Este segundo lugar não é pouca coisa apesar de não ter qualquer concretização política imediata. É absolutamente literal que é a luta pelo segundo lugar que mais faz mexer as câmaras de televisão e a atenção dos portugueses.

Está aqui o primeiro problema.

As câmaras de televisão, em representação do que lhes dá audiências ou seja da nossa atenção, não largam o candidato que quer ser Presidente de uma República mas que anuncia uma ditadura e que imita o derrotado Trump em tudo o que pode. Nos próprios gestos. Nisto ele é bom.

Porque é que este candidato desperta tanta atenção? Porque é sinistro em tudo o que um político pode ser sinistro.

Qual é o efeito que resulta de lhe darmos tanta atenção? Não se sabe ao certo mas, se formos pela lógica da publicidade, pode ser um empurrão que lhe estamos a dar.

Sucedeu com o seu professor Trump. O grotesco atraiu a atenção do eleitorado. A atenção do eleitorado ditou a atenção da comunicação social e depois entrou-se num circuito fechado que acabou mal. O Trump dava audiências às televisões, as televisões davam atenção ao Trump e, desta forma, participaram no processo que culminou com a sua eleição. Sucede que todos participaram.

Com as devidas adaptações, e estando numa fase inicial, aqui tudo se repete e cada um de nós está a participar. O objectivo é chegar à governação abrindo uma sucursal da solução encontrada nos Açores. Não quero levar ninguém ao engano: assumo-me como participante no processo que move as atenções do eleitorado para o embuste e recuso-me a fazer parte de uma resistência silenciosa que trata a política como se trata um produto comercial: “melhor não falarmos muito neste tipo ou ainda levamos com ele a sério”. Faço então parte da resistência que fala e acredito no combate ao embuste e ao fascismo por métodos opostos àquele que leva alguns a estarem calados.

O problema é que poucos se entendem em relação ao método que deve ser usado neste combate e nesse desentendimento passeia o Ventura sem qualquer espécie de travão. À data em que escrevo o embuste participou num jantar comício que contrariou todas as orientações da DGS e o parecer da ARS Norte. À data em que escrevo estamos no momento mais grave da pandemia. Se este facto deveria impedir os eleitores de votar no embuste? Sim. Se vai impedir? Diria que muito poucos dos que já decidiram fazê-lo. Está em curso um processo de divisão do país que demorará muitos anos a cicatrizar e que vai deixar cicatrizes feias. Para já, sangra e ainda ninguém percebeu se existe um limite para os portugueses que estão nesta cegueira.

Hoje quero falar da relação da esquerda com o problema do crescimento do Chega e do seu reflexo nestas presidenciais. Já tive programas de domingo mais agradáveis. Não me apetecia meter aqui o dedo mas é lá que está a ferida.

A esquerda, de uma maneira bastante transversal, entende que o problema que está criado não se resolve com a extinção do partido por mais ilegalidades que estejam ali em causa. Concordo que não se resolverá, mas será um primeiro passo que só peca por tardio. Já lá fomos.

A partir daqui fará sentido perguntar qual é a solução que a esquerda aponta e a resposta é fácil: derrotar o embuste num sufrágio eleitoral.

Tudo bem.

E o que faz a esquerda para combater o fascismo nestas eleições? Faz tudo menos aquilo que deveria ser feito quando se está num combate: um entendimento que mobilizasse os eleitores para uma direção clara. Isto pode ser diabólico para quem quer combater o fascismo num boletim de voto. Não é certamente o meu caso. Votarei em quem acredito. A paz de espírito não virá com o resultado destas eleições.

Ao eleitor de esquerda são apontados quatro caminhos possíveis: votar em Marcelo Rebelo de Sousa como sugeriu António Costa. Não me irei alongar aqui. É uma pessoa de quem gosto. Parece que tem a eleição garantida. Piores males virão ao mundo. Não o vejo é como uma possibilidade de esquerda e a sua vitória certa cansa mais do que descansa; em Ana Gomes como sugere grande parte dos que defendem uma união das esquerdas. Ana Gomes é uma candidata empática que se destacou por isso mesmo, pelas suas posições destemidas e pontualmente desbocadas e, é certo, por ser livre; em Marisa Matias candidata apoiada pelo Bloco mas que tem uma personalidade que se sobrepõe às políticas nacionais do partido. Aqui não há um elogio ou uma crítica, parece-me um facto e os factos são sagrados. É também a candidata onde é óbvio o reflexo da luta feminista e a defesa das causas que tornaram mais fáceis a vida de muitos. Não falo da defesa liberal das causas progressistas, falo delas integradas numa lógica de esquerda o que muda tudo; e em João Ferreira, candidato apoiado pelo PCP, que faz lembrar a frase que alguém usou a propósito do movimento punk: “punk’s not dead”. O comunismo também não está e o desempenho de João Ferreira vem lembrar isso.

Soluções não faltam.

Já não é apenas pedido ao eleitor que vote. É-lhe pedido que vote de uma maneira inteligente e, se preciso for, que tome decisões complicadas das quais se poderá depois arrepender.

A luta antifascista tem tantos pais e mães que está desamparada. Está órfã. Porque de repente a esquerda delira com Mayan? Será porque lhe acha graça? Nenhuma. A esquerda antifascista delira com quem conseguir malhar no Ventura. Mayan conseguiu. Isto é mais grave do que parece. Se a direita está mergulhada numa crise profunda, seria bom que a esquerda se aguentasse.

A nenhum eleitor pode ser exigido que faça bem as suas continhas para não se enganar e não contribuir para a vitória que André Ventura estabeleceu para si mesmo: ficar à frente de Ana Gomes. É que grande parte dos antifascistas estão na esquerda bloquista e comunista e não vejo que seja justo pedir a este eleitorado que decida entre “derrotar” o embuste ou dar força a projectos políticos que se manterão para lá destas eleições e que, justiça lhes seja feita, contribuíram e muito, para a consolidação da democracia em Portugal. Como pedir a um comunista que vote contra o fascismo (o que supostamente seria votar em Ana Gomes) se é sabido que, se João Ferreira não tiver um bom resultado eleitoral, essa derrota terá impacto no posicionamento do partido em futuras eleições? Como pedir a um bloquista ou aos simpatizantes de Marisa Matias que abdiquem de votar nela para apoiar a luta antifascista? É evidente a necessidade destes partidos de manterem posições, de não existirem recuos na composição das bancadas parlamentares. É um número elevado de deputados que permite alguma especialização dos deputados em determinados temas e só essa capacidade pode garantir a qualidade do trabalho parlamentar.

Novamente não quero levar ninguém ao engano; toda a simpatia pela Ana Gomes e este artigo não é sobre a sua candidatura.

Adiante.

Os dilemas políticos estão entregues.

Existe um ditado afegão que reflecte com muita precisão a dinâmica da esquerda: Eu e o meu país contra o resto do mundo, eu e a minha tribo contra o meu país, eu e a minha família contra a minha tribo, eu e o meu irmão contra a minha família, eu contra o meu irmão.

É perfeito.

Mas, até neste ditado, existe uma ordem de prioridades. “Eu contra o meu irmão” é só quando existe entendimento entre a minha família e a tribo. É muito difícil, senão impossível, travar duas guerras ao mesmo tempo. Alguém se esqueceu de definir a prioridade ou, se não se esqueceu, cometeu alguma falha.

A esquerda não pode ter tantas frentes de combate antifascista e, ao mesmo tempo, afirmar que o voto é uma modalidade neste combate e ainda que ele é fundamental.

Lamento. Este é o artigo mais desagradável que escrevi mas digo que a falta de organização da esquerda ultrapassa o limite do aceitável. Estamos numa eleição presidencial – não são legislativas – e não foi capaz de estabelecer qualquer entendimento que assegurasse uma vitória onde afirma que ela deve existir.

Faço parte do grupo que não acredita na validade de um partido racista e fascista como possibilidade no boletim de voto e que, por isso, não acredita que a luta esteja no voto mas sim no que deve ser feito para que a lei constitucional, a Lei nº 64/78, de 6 de outubro e a Lei dos Partidos sejam cumpridas. O mesmo para o dirigente desse partido ou organização fascista. Não é o mesmo que conformar-me com o facto de ver a esquerda organizada como se ele não existisse. Já não é a luta antifascista que está em causa, é a integridade e coerência da própria esquerda. O crescimento da extrema-direita surge também com alguma falta de talento da esquerda para cativar algum eleitorado que deveria ser seu. Seria justo que fosse. Que essa falta de talento não evolua para a cegueira de ignorar onde isto pode acabar. Está aqui o meu pessimismo. Conforto-me com outro ditado, agora um português: Não se deve procurar nos ramos de uma árvore aquilo que está nas raízes. Nunca seriam estas eleições a resolver o dilema que enfrentamos.

Agora a lengalenga ou melhor um pouco da tabuada (existe aqui a familiaridade de uma música conhecida mas há sobretudo verdades matemáticas) da luta antifascista:

As desigualdades sociais provocadas pelo liberalismo são sementes envenenadas não só para os visados. Isto significa que apenas políticas de esquerda podem resolver o que está na base do crescimento de uma ideologia - que era residual e que, por isso, não teve o tratamento que deveria – mas que já não é.

O jornalismo de investigação, miseravelmente pago, é fundamental e tem revelado o que para ali vai. Ler estes trabalhos ou assistir às reportagens é cidadania. Se o embuste dá audiências e leituras que isso seja usado para o desmascarar: mentiras, crimes, lutas internas e oportunismo. É curioso que o verdadeiro fascismo parte de quem é quase invisível. O embuste faz de locutora de um programa muito antigo, do tempo em que eram escolhidas por serem mulheres, terem boa imagem, boa dicção e pouco mais.

E já agora, como poderão os portugueses votar num homem que se propõe ser Presidente da República e que, por isso, quer ou aceita fazer o juramento solene - perante a Assembleia da República, imediatamente antes de assinar o auto de posse do cargo - de que fará cumprir a Constituição? Será a sua Constituição imaginária, a que permite a diferenciação entre portugueses e a castração ou será a actual que afirmou pretender rasgar?

Recordo a todos os termos desse juramento, que constam no art. 127º da Constituição da República Portuguesa:

“Juro por minha honra desempenhar fielmente as funções em que fico investido e defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa.”

Seria sempre por sua honra, que sabemos não existir, e não pela dos portugueses mas, caramba, o descontentamento deve encontrar melhor desforra e é responsabilidade de todos pôr termo a esta emboscada.

É tarde mas os portugueses merecem que não seja tarde demais.

Por último: alguém tem o endereço de email do Jaime Nogueira Pinto? É que a tese de doutoramento do embuste já anda à solta na internet e gostaria de lha enviar e de recomendar a leitura. Sei que uma visão para Portugal pode fazer engolir muitos sapos mas, da mesma maneira que sinto curiosidade por perceber onde está o limite dos eleitores vítimas do embuste – também a tenho em relação aos limites do Jaime Nogueira Pinto.

Nota: à hora em que finalizo este artigo parece evidente que os ciganos que participaram numa acção de campanha de André Ventura, em Bragança, não eram ciganos. Nem inventado.

Isto está muito perigoso mas não será aborrecido.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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