Opinião

O terror em estado puro

João Vaz de Almada*

Moçambique está a transformar-se em mais um caso da chamada maldição dos recursos naturais em que o continente africano é, infelizmente, fértil

Não, não pode ser! O meu país não tem esta gente, porque esta gente não é gente. Não pode ser gente. Nem tampouco animais, porque os animais também não têm este tipo de comportamento.

Pelos vídeos que me têm chegado nos últimos dias reportando a situação que se vive em Cabo Delgado, é difícil catalogá-los como seres deste mundo. Mas são, estão lá, são feitos de carne e osso, como as suas vítimas, que decepam, despedaçam, retalham, numa orgia de sofrimento, dor extrema, agonia e, por fim, morte, que é o melhor que pode acontecer a alguém naquela situação de martírio extremo.

Vive-se e assiste-se ao terror em estado puro, virgem, sem qualquer tipo de burilamento. E, diga-se, estes atos são praticados por ambos os lados: tanto pelos terroristas – já deixaram de ser catalogados como insurgentes – como pelas Forças de Defesa e Segurança (FDS). Estas últimas, com o pretexto de extrair confissões, como se naquele estado moribundo alguém dissesse alguma coisa com o mínimo de sentido, arrastam a tortura o mais que podem, enquanto uma multidão ululante e cobarde, constituída por camaradas de armas e aldeões, dá vivas ao macabro espetáculo.

A expressão homo homini lupus – o homem é o lobo do homem -, proferida há mais de dois mil anos pelo dramaturgo romano Titus Plautus, revela-se mais atual do que nunca na província Cabo Delgado.

Efetivamente, para os supliciados, a morte, tão trágica para nós, humanos, em Cabo Delgado é uma libertação, como alguém que está encarcerado numa "solitária" escura meses a fio e, de repente, é encandeado pela intensa luz do dia quando lhe abrem a porta. Um corpo inerte, estendido no chão, só encontra paz se não reagir a uma chambocada, a uma paulada ou a uma catanada. Só assim, imóvel, deixa de ser alvo de ira, de ódio, de raiva. É a estação terminal de uma linha de barbárie que vai passando por aquilo que estes seres, não consigo atribuir-lhes um nome, conseguem produzir de mais hediondo. Na poeira revolta pelo estertor dos supliciados, jazem os troféus, feitos de partes de um todo. Dir-se-ia que são “coisas” feitas sem pés nem cabeça.

O povo de Cabo Delgado, a província mais setentrional do meu país, está assim, abandonado à sua sorte, fugindo apavorado dos senhores de uma guerra que dura há três anos, mas ninguém nos quer explicar os seus motivos.

Teorias não faltam. Para uns é o extremismo islâmico a querer impor mais um califado. Para outros é fruto do descontentamento de quem não tem nada e à sua volta só vê riquezas. Há quem defenda que é fomentada por quem ficou de fora quando se distribuíram as tais riquezas, ou seja, os que não entraram na divisão do bolo. Para outros ainda, mais ligados a teorias da conspiração, poderá ser uma manobra de diversão promovida pelos grandes barões da droga que com o conflito mantêm ocupadas as FDS, abrindo uma passadeira vermelha para fazer do porto de Nacala placa giratória, conduzindo a mercadoria para outras geografias.

Qualquer explicação para esta barbárie, em 2020, não tem explicação. Estive em Cabo Delgado em três ocasiões, a última das quais há cerca de dez anos. Desta terra recordo as suas gentes calorosas, afáveis, prestáveis, dando as boas-vindas aos visitantes sempre com um sorriso no rosto. Tanto dos kinwanis e dos macuas, no litoral, como dos macondes, no planalto de Mueda, no interior, apesar das enormes diferenças entre eles, só senti hospitalidade, afabilidade e carinho.

Para sentir isso, basta atentar-se no maior ícone do artesanato maconde – este povo é exímio a trabalhar a madeira, especialmente o pau preto – o Ujamaa, que significa família, cooperação, união, fraternidade, sendo representado por uma escultura em forma de torre de madeira esculpida, conhecida também por "árvore da vida", valores completamente à antítese do que hoje se passa naquele território.

Em Mocímboa da Praia, a vila mais martirizada por esta guerra e onde tudo começou, em outubro de 2017, descobri, no principal jardim, uma biblioteca municipal, bem ao estilo dos quiosques do Estado Novo, com meia dúzia de livros amarelecidos, engelhados, mas avidamente consultados por jovens cheios de vontade de fortalecer os seus conhecimentos. Que será feito deles? Na vila não estão certamente. A vila tornou-se uma povoação fantasma, sem vivalma, habitada por casas carbonizadas.

Na pacata Pemba, capital da província, vivia-se um ambiente descontraído, vivo, com uma dinâmica transmitida por expatriados ligados a empresas de pesca e ao turismo que começava então a dar os primeiros passos. Ao longo da marginal, pela praia do Wimbe fora, comia-se excelente peixe e marisco acabados de pescar. E, mais à frente, no farol, surgia uma praia daquelas com água translúcida, que se vê nas revistas de viagens, apetecendo estar ali horas e horas, em comunhão com a natureza em estado bruto. Dizem que se transformou num campo de refugiados, acolhendo deslocados de toda a província, sendo o único local que, por estar forte e permanentemente vigiado, inclusive por mercenários estrangeiros, oferece alguma segurança.

Mais a norte, na praia de Pangane, rodeada de palmeiras a perder de vista, assisti a um dos mais inesquecíveis nascer do sol da minha vida, sombreado pela silhueta das mulheres kinwanis carregando bacias de água à cabeça, naquele equilíbrio africano que dispensa as mãos. Valeram bem as três horas do tortuosíssimo caminho percorrido desde o cruzamento de Mucojo. Chegou-me a notícia que a guerra também foi ali parar, ali onde a única riqueza é a paisagem e as suas gentes! Ali não havia nada, só tranquilidade e paz!

Foi no interior de Cabo Delgado, na zona do posto administrativo de Nairoto, distrito de Montepuez, que deparei com uma pobreza profunda, absoluta, arrepiante. Levávamos cigarros para os homens e rebuçados para as crianças. O mesmo cigarro passava por vários lábios e os doces foram devorados a uma velocidade estonteante. A pobreza era democrática, não havendo qualquer palhota que sobressaísse das demais.

Era vulgar a fonte de água mais próxima ficar a 30 ou 40 quilómetros de distância. Não fora o invasor plástico, materializado nas cadeiras, e a paisagem seria exatamente igual à de há 100 ou 200 anos. Mas havia um bem muito precioso que hoje é uma miragem: a paz.

O anátema lançado sobre Cabo Delgado é a sua riqueza. Neste território, de cerca de 82 mil quilómetros quadrados, concentram-se madeiras e pedras preciosas, uma abundante fauna bravia, praias e ilhas paradisíacas, algumas delas com uma história vastíssima, como a ilha do Ibo, e, por fim, a maior riqueza, descoberta recentemente e, dizia-se, capaz de tirar todo o país da pobreza: o gás natural. São reservas que fazem de Moçambique o Qatar de África. E a guerra intensificou-se justamente após os propalados triliões, tanto de metros cúbicos de gás como de dólares. Moçambique está a transformar-se em mais um caso da chamada maldição dos recursos naturais em que o nosso continente é, infelizmente, fértil.

Hoje, fala-se de 200 mil deslocados internos em toda a província e de um rasto de destruição de mais de uma centena de povoações. Quem quase nada tinha ficou agora sem esse quase. Sem, literalmente, nada.

* Consultor de comunicação moçambicano

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