Na zona da Cordoaria, no Porto, mesmo em frente à Cadeia da Relação – hoje, Centro Português de Fotografia – está desde 2012 uma estátua de Camilo Castelo Branco. Em frente à antiga prisão onde o célebre romancista esteve encarcerado, a estátua não tem só Camilo, mas também uma mulher: Ana Plácido, que cumpriu, como ele, uma pena de um ano e dezasseis dias pelo crime de adultério.
Ana Plácido foi uma jovem obrigada a casar aos 19 anos com um comerciante rico muito mais velho que ela, largou o marido para viver com Camilo um grande amor, foi julgada e presa com ele, foi sua companheira até morrer. Mas foi mais que isso. Foi, ela própria, uma escritora, autora de romances, poemas, críticas literárias, traduções e adaptações. Muitos dos seus livros aparecem assinados por pseudónimos masculinos. Gastão Vidal de Negreiros e Lopo de Sousa são os mais conhecidos.
Na escultura em frente à antiga cadeia, contudo, Ana Plácido não é um sujeito de escrita, mas um objeto de inspiração erótica de Camilo. O escritor aparece vestido com um longo e pesado manto (dá ideia de estar num frio dia de Inverno) e a mulher aparece nua, nos seus braços. Quem olhar a escultura de frente vê o rosto grave de Camilo e o rabo ao léu de Ana Plácido.
A cidade está cheia destas marcas da cultura patriarcal – e nalguns casos, como na escultura de Camilo, colocada ali em 2012, até são marcas recentes. Num espetáculo apresentado no ano passado, a encenadora e atriz Sara Barros Leitão guiava-nos por algumas delas e apresentava-nos o resultado de um levantamento exaustivo que fez sobre as ruas da cidade: até 2017, dos 2468 topónimos que a cidade tinha, só 50 eram de mulheres. Como explicava a atriz, 95% dos nomes das ruas eram masculinos. Ruas com nomes começados por “Dr.”, por exemplo, eram 86. Que história nos contam estas ruas? Quem lembram - e porquê? Quem não lembram - e porquê? Não é estranho que na nossa memória coletiva haja tantos lugar para homens e a maioria da cidade quase não exista?
Mas há outros exemplos. Só muito recentemente, a 29 de fevereiro deste ano, se fez no Porto uma estátua a uma das mais marcantes e mais exploradas condições da mulher trabalhadora na cidade: as carquejeiras. A inauguração da estátua foi apresentada pelo historiador Hélder Pacheco como “um pedido tardio de perdão”. A estas mulheres, invisíveis para o Porto burguês mas essenciais para que a cidade funcionasse, pagava-se miseravelmente para um trabalho de uma dureza destrutiva. Estas mulheres faziam uma dessas atividades que, como escreveu Germano Silva, “não quero de volta de maneira nenhuma. Mas não quero também que se deixe de falar delas, para se saber o sacrifício que houve”.
A história dos subalternos, da classe trabalhadora ou das mulheres, das minorias étnicas ou culturais, está ainda em grande medida por contar. Como está por contar a “nossa” história – isto é, a história oficial que nos contam – mas agora pelo ponto de vista dos outros. A história do Porto burguês contada por quem só frequentava os salões para limpá-los. A do mundo das artes contada pelas mulheres que tinham de fingir um pseudónimo masculino para escrever numa revista. A da colonização portuguesa contada por quem foi vítima dela e dos seus processos de escravização, de violência e de expropriação.
Há uns meses, numa sessão promovida pelo Núcleo Anti-Racista do Porto, foram-me dadas a ver coisas na minha cidade em que nunca reparara. Foi ali que vi, pela primeira vez, as imagens dos “indígenas” exibidos como animais de zoológico nos jardins Palácio de Cristal, na 1ª Exposição do Mundo Colonial, que aconteceu em 1934. Para habitarem núcleos expositivos como a “aldeia indígena guineense” ou o cantinho dos “feiticeiros moçambicanos”, e mostrar assim ao vivo quão exóticas eram as “espécies” que existiam no nosso extenso império colonial, o regime fascista fez vir para o Porto 63 guineenses, 9 timorenses e 104 moçambicanos. “Vamos ver os pretos”, diziam as reportagens da época sobre as excursões dos jovens à exposição. Talvez os meus avós, então com 13 e 14 anos, tenham feito parte de alguma destas visitas.
Sabermos estas histórias sobre os lugares que habitamos – esta eu só a conheci em 2019, por exemplo, e pela mão de um grupo anti-racista – é essencial para nos percebermos melhor. É óbvio que o colonialismo, aliás como o patriarcado e o capitalismo, não existem hoje da mesma forma que existiam há um século. O trabalho das carquejeiras foi proibido, as mulheres em princípio não precisam de se esconder sob nomes masculinos quando são escritoras, não se importam “indígenas” de territórios ocupados pela força militar para fazer feiras no Palácio. E no entanto, cientes dessas transformações e das lutas que as conquistaram, como não ver também os padrões que, reconfigurando-se, permanecem? As trabalhadoras da limpeza, “mulheres de ferro” como as carquejeiras, tantas vezes igualmente ignoradas pelo Porto burguês de hoje, e por vezes “importadas” de outros países como força de trabalho barato e com poucos direitos. As mulheres que, em pleno século XXI continuam a entrar mais facilmente nas galerias como modelos nos quadros do que como artistas que os assinam. Os jovens racializados, que ajudam a colorir os dias “interculturais” das escolas, mas que são relegados para “currículos alternativos”.
Qualquer identidade é sempre uma relação provisória – uma relação social e uma relação de forças. É assim com o “Porto”, com “Portugal”, com a “Europa”, e por aí fora. As nossas identidades, as narrativas que lhe estão associadas, quem pomos dentro e fora delas, quem é lembrado e quem é esquecido, de quem falamos e de quem não falamos, quem vê e quem é visto, quem fala e quem é falado – tudo isso está indelevelmente marcado pelo sistema em que vivemos: pelo capitalismo, pelo patriarcado, pelo racismo que existe e marca todo o nosso quotidiano e as nossas relações.
Não amo menos o Porto por isso. Mas o Porto – como o país – é para mim essa luta, é essa transformação, são esses outros olhares, é o lugar justo que havemos de inventar, também contra a exploração e a desigualdade passada. Não me venham por isso impingir histórias fechadas nem símbolos intocáveis. Tenhamos a inteligência de nos dispormos a descolonizar os nossos imaginários.
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