Por Jorge Afonso Morgado e Fernando Rodrigues Pereira, membros fundadores do Manifesto Destino: Europa
Quando Felipe González explicou ao chanceler alemão Helmut Kohl que “o céu em Bruxelas é demasiado baixo”, para de seguida acrescentar que seria “insuportável viver com um céu tão baixo”, a Europa deixou de ser um projecto político. A recusa do antigo presidente do Governo espanhol em liderar a Comissão Europeia, no final do século XX, foi a última oportunidade para a União Europeia ter uma condução eminentemente política. E, nessa medida, tratou-se de uma oportunidade perdida de se reforçar enquanto uma causa dos cidadãos.
A crise da União Europeia é reflexo da prolongada ausência de lideranças inspiradoras e carismáticas nos diversos países que a constituem? Ou, pelo contrário, é a crise do modelo político, económico e social nas democracias europeias a origem do afastamento que afasta os mais capazes e os mais brilhantes das governações nacionais e, por conseguinte, da cena europeia? É a crise de um modelo dominado por uma “crosta” de funcionários cuja palavra ou carimbo valem mais que o sentir e as expressões de cidadania das pessoas dos diferentes países ou regiões?
Nos trinta e cinco anos do tratado de adesão de Portugal e de Espanha à Comunidade Económica Europeia, que se celebram a 12 de Junho, podemos sentir falta de um Mário Soares, de Jacques Delors, de González, de François Mitterrand, de Margaret Thatcher, de Kohl ou de Giulio Andreotti. Retirados da política ou já falecidos, a simples memória de alguns destes nomes remete-nos para um quadro de qualidade intelectual, sofisticação política e ambição europeísta por si só capaz de ensombrar e diminuir o mérito de muitos dos que se lhes seguiram.
Sendo certo que a história não se faz apenas de grandes homens e de grandes mulheres, nunca tantas e tão excepcionais personalidades estiveram juntas nos principais centros de poder durante tanto tempo como em meados da década de 1980. A factura foi todavia alta e a herança relativamente envenenada. Desde então, a história da construção e da integração europeias beneficiaram de impulsos dedicados e de realizações bem-sucedidas de muitos outros líderes. Soube sempre a pouco, dos tempos da política à “flor da pele”, por vezes com decisões até um pouco toscas, a Europa veio a cair num híper realismo em que a preparação da decisão é asséptica ao ponto de tornar os políticos e os seus representados (quase) inúteis. Parece ser facto consensualmente reconhecido que o aprofundamento das políticas comuns se foi materializando nas costas dos cidadãos ou, pelo menos, por caminhos paralelos e indiferentes aos cidadãos. Basta recordar o que sucedeu em alguns referendos (e na sua repetição) a alguns tratados. Basta lembrar a profunda divisão europeia face à Guerra do Iraque ou os repetidos equívocos e falhanços em matéria de política de defesa comum e de relações internacionais ao longo das décadas mais recentes. Basta pensarmos quão infrutíferas são a maioria das negociações orçamentais ou há quanto tempo não ouvimos serem pronunciadas, em sede de debate à escala europeia, as palavras solidariedade e subsidiariedade.
Já era necessário antes, é-o ainda mais depois do brexit e do que sabemos quanto à forma como o brexit foi proposto, referendado e concretizado – antes em função de cálculos e de estímulos de natureza política interna britânica do que em razão de uma análise custo-benefício da pertença do Reino Unido a uma Casa Comum chamada União Europeia.
Já era obrigatório antes, é-o ainda mais depois da pandemia do Corona Vírus e das suas avassaladoras consequências económicas e sociais, cujo alcance não somos sequer capazes de antecipar com rigor, e das suas imprevisíveis consequências políticas – aparentemente propícias ao crescimento dos movimentos extremistas e radicais, à esquerda e à direita, e ao enfraquecimento dos movimentos de matriz moderada.
Em Junho de 2020, várias coisas são certas quanto ao presente da Europa: dispomos de menos riqueza e assistimos à maior recessão económica desde a II Guerra Mundial; temos a livre circulação suspensa, algumas liberdades constrangidas e outras severamente fiscalizadas; preparamo-nos para o maior abalo jamais registado no Wellfare State de que tanto nos orgulhamos e para uma perigosa prova de vida para os sistemas públicos de saúde e de pensões.
Trinta e cinco anos após a assinatura da adesão às Comunidades, Portugal e Espanha, juntos ou aliados a outros países do Sul, são cada vez menos periféricos na definição de um caminho para o futuro conjunto europeu. A influência ibérica deve dispensar alinhamentos matemáticos de geometria variável e apostar prioritariamente em opções estratégicas de longo prazo, assentes na solidez do sucesso das experiências transfronteiriças, na consistência de sociedades multiculturalistas, na dinâmica de interesses idênticos e na valorização de uma vocação europeísta de raiz latina e de matriz democrata e socialmente liberal. Com as pessoas no centro e na base das decisões políticas comuns.
Em termos práticos, uma nova atitude ibérica no quadro da União faz-se enquanto contributo colaborativo e não enquanto imposição de vontades, algo que estaria sempre condenado a uma posição irrelevante. Portugal e Espanha, juntos, podem apontar o caminho. Três caminhos.
O Caminho da Simplificação. De processos e de objectivos. Por outras palavras, o caminho da desburocratização, tornando as estruturas de decisão da União Europeia numa realidade menos distante e ininteligível. Simplificar primeiro o que é simples e pequeno. Simplificar depois o que é mais exigente e complexo. Aproximar as pessoas, aproximar os cidadãos, comunicando com eles, envolvendo-os e fazendo com que se sintam parte. Parte do processo europeu. Em suma, proceder a uma verdadeira mudança de estilo e de regime. Colocar fim à Eurocracia, reforçando a verdadeira Democracia.
O Caminho do Território. A Europa dos Estados deve abrir mais espaço à Europa das Regiões, através do aprofundamento efectivo das políticas inter-regionais e dos recursos económicos que lhes são afectos. O trabalho desenvolvido ao nível regional não é apenas gerador de mais desenvolvimento como, através de uma capacidade de intervenção geográfica que supera fronteiras, é uma ferramenta altamente reconhecida e valorizada pelas populações. Mais do que as políticas transnacionais, o caminho das regiões é próximo – porque resolve problemas reais -, é transparente – porque materialmente escrutinado -, e agregador – porque fortalece e consolida o sentimento de pertença dos cidadãos.
O Caminho Geoestratégico. Portugal e Espanha tem uma profunda vocação universalista inscrita na sua história ao longo dos séculos. A identidade ibérica é sinónimo de descoberta, de comércio livre e de integração cultural. Portugal e Espanha são reconhecidamente os países europeus com maior afectividade e capacidade de diálogo recíprocos com as Américas, com África e com parte substancial da Ásia. Numa época em que o tabuleiro da política internacional volta a ser necessariamente multipolar e cada vez mais complexo – seja qual for o caminho da globalização, o futuro das alianças estratégicas e a evolução do potencial militar de cada bloco -, a Europa deve deixar de ser um continente sem rumo e sem luz própria. Os mundos do mundo são os mundos ibéricos. Uma nova política geoestratégica europeia terá tudo a beneficiar de uma forte participação ibérica.
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