Exclusivo

Opinião

Ora anote dois bons truques para assaltar os contribuintes

Ora anote dois bons truques para assaltar os contribuintes

Francisco Louçã

Economista, Professor Catedrático

Foi bonita de ver, a galeria de solenes articulistas que vieram rasgar as vestes pelo pagamento imediato dos 850 milhões ao Novo Banco. Entre os mais vocais, alguns comentadores indignaram-se contra a mirabolante hipótese de fazer depender a decisão de uma auditoria, asseverando que o contrato obriga ao pagamento incondicional. Para não ser desagradável e não me atrever a suspeitar da sua probidade, dou por certo que os comentadores paguistas conhecem o dito contrato, visto que é secreto para todos nós, os demais, e fizeram uma exaustiva perícia jurídica a esse texto, para dar razão à Lone Star

Outros, menos ousados, lembraram simplesmente que a autorização de despesa está no Orçamento (como estavam alguns milhares de milhões de investimento público que não foram executados ao longo dos últimos anos, curioso esquecimento) e, portanto, que o desembolso é uma questão de dogma de fé. O que é certo é que trataram a posição inicial do primeiro ministro como um delírio (e houve mesmo quem usasse o termo). Estes arautos da boa conta ficaram assim com substanciais razões para se regozijar com o rápido recuo do Governo nesta matéria, dando o dito por não dito. A sanidade foi restabelecida, a crise-que-não-foi-crise já passou.

Tudo voltaria deste modo à paz celestial se não tivessem ocorrido dois percalços desagradáveis. O primeiro foi uma investigação de Miguel Prado no Expresso, publicada pouco mais de 24 horas passadas sobre a reconciliação ministerial e o comunicado da concórdia. Revelou este jornal que, no final de dezembro de 2019, o Novo Banco vendeu um crédito com a propriedade de um pacote imobiliário, incluindo quinta em Sintra e palacete no Estoril, a José António dos Santos, o “rei dos frangos”. Tudo com um saboroso desconto de 67%, o que lhe deu a ganhar num ápice 11,7 milhões sobre o valor nominal do contrato (quanto ganhará quando vender a quinta e o palacete ainda está para ver). Uma parcela dos 850 milhões pagos por Centeno a 6 de maio vai para proteger este negócio.

Ora aqui está como se esmifra os contribuintes. Está tudo escrito nesta operação: o crédito tinha uma garantia real e nada parece indicar que devesse ter sido vendido com perda; uma perda de dois terços do valor de uma carteira de imobiliário, nos anos em que os seus preços dispararam para o céu, parece piada; o banco, assim, ter-se-á limitado a transferir valor para o comprador, que faz um negócio das Arábias; registando o prejuízo, o banco exige então ao Estado que lho pague, o que os revisores de contas, os inspetores vários, o fundo de resolução e o Ministério das Finanças aceitaram de ânimo leve.

A coisa ainda se complica mais, dado que no mesmo dia outro jornal, o "Público", divulgou uma investigação cuidadosa sobre este mistério: como é que créditos que eram garantidos como “sólidos” se tornaram de repente incobráveis e deram origem ao registo de prejuízos? Lembra a jornalista, Cristina Ferreira, que o risco destes créditos agora vendidos ao desbarato já tinha sido totalmente provisionado, que as contas tinham sido devidamente auditadas e fiscalizadas pelo Banco de Portugal e pela PwC, assinadas pelos administradores e sujeitas “a grande exigência nos critérios de análise de constituição de imparidades”, sendo uma “carteira sólida”, no dizer de António Ramalho em 2016.

Mas eis que aparecem buracos, logo nos anos em que há mais crescimento económico, em que os preços do imobiliário crescem, os negócios retomam, o emprego cresce. Os créditos provisionados afinal não estavam protegidos, as desgraças multiplicam-se e, num passe de prestidigitação, todos os anos dão origem ao número maravilhoso de mil milhões de prejuízos para o Estado pagar, sacados de um fundo inesgotável de créditos obscuros que eram “sólidos” até anteontem.

Aqui tem as duas técnicas para cobrar uma boa maquia aos contribuintes. Felizmente, como afirma o comunicado do primeiro-ministro, confiamos nos revisores de contas e técnicos auditores que certificaram que os créditos estavam garantidos e depois que não estavam; admiramos as administrações que asseguraram que não era preciso mais capital e que nos levam mil milhões cada ano com a pontualidade de um relógio de cuco; respeitamos a palavra dos banqueiros que afinal tão bem procederam que acharam que mereciam premiar-se a si próprios, mesmo contra a lei, pois a sua própria lei é inquestionável; veneramos a desenvoltura negocial de um “rei dos frangos” e da demais aristocracia dos cabedais deste cantinho à beira-mar plantado; e obedecemos a um contrato que fica secreto por razões íntimas desta relação especial entre o Terreiro do Paço e o Lone Star. Abençoadas autoridades que por nós velam.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate