Sabes bem que na tua história já passaste por muitos surtos epidémicos, desde a grande peste de 1569, às bubónicas, às do tifo, da varíola, da malária, da cólera, da gripe espanhola...

Sabes bem que nessas alturas já tiveste de isolar bairros, minimizar possibilidades de contágio e que até já chegaste a fechar as tuas portas.

Sabes bem que nessas crises tiveste de improvisar mais Casas da Peste, mais Casas da Saúde, fosse na Pampulha, no Hospital de Todos-os-Santos ou em mais enfermarias da Misericórdia...

Sabes bem, como noutras ocasiões, que pode acontecer que as camas nos hospitais não cheguem para todos os infectados e que tens de pedir que muitos fiquem em casa...

Sabes bem que agravarás a desgraça se fores indiferente e não cuidares dos mais frágeis, dos mais pobres, dos que não têm ninguém, alguns nem tecto, e dos mais idosos.

Sabes bem, como sempre fizeste, que tens de proteger os médicos e os enfermeiros, os que limpam a cidade, os que a vigiam e a socorrem e os que tratam dos mortos.

Sabes bem que nesta epidemia não podes, como já aconteceu no passado, aliares à mesma, durante ou depois, fome.

Sabes bem que tens de tentar suster com determinação o desaparecimento de empregos e de muitas outras formas de subsistência dos lisboetas.

Sabes bem que é nestas situações que se vê o timoneiro, pois qualquer um o é em mar tranquilo.

Sabes bem que se tem de liderar mais pelo exemplo do que pelo poder, mostrando serenidade perante as adversidades.

Sabes bem, até pela tua experiência, que devemos evitar vaidades – há sempre aquela inveja de Miss, de quem aparece mais ou de quem fez primeiro – porque esses serão sempre vencidos pelos próprios soluços, as medidas avulsas.

Sabes bem que só com muito trabalho é que se consegue vencer uma epidemia e que não se vence este perigo sem perigo.

Sabes bem, e já citaste por várias vezes os muito antigos, “que os remédios são mais lentos que os males”, como também já constataste em situações idênticas que “o mal vem a cavalo e vai embora a pé”.

Sabes bem que não devemos poupar sacrifícios para evitar o mal iminente ou, como diria Santo Agostinho, “a peste quer uma moeda; dá-lhe duas e ela se vai”.

Sabes bem que para tudo isto foram sempre os homens bons e os mesteres da “Casa dos 24” que te ajudaram neste tipo de agruras, sem nomes, juntos, com todos.

Sabes bem que não podes esquecer o amanhã, o depois, que não podes parar, por mais ingrato que possa parecer, por mais difícil que possa ser.

Querida Lisboa, ontem fui à Igreja de São José dos Carpinteiros toda magnificamente restaurada, incluindo a mesa antiga da Casa dos 24, com as suas 24 gavetas, todas iguais. Íamos hoje inaugurar a reabilitação deste edifício, no âmbito da Lisboa Capital Verde Europeia 2020, no dia do Pai, com uma exposição sobre um dos grandes mesteres de Lisboa, o Gonçalo Ribeiro Telles. Ficará para depois, como uma rosa que irá nascer dos espinhos por que todos vamos passar.

Agora, tal como certamente faziam os Vereadores antigos, vou ter com as 24 Juntas de Freguesia (a Casa dos 24 de hoje) e com outros homens bons da cidade dos nossos tempos e tentar contribuir para aquilo que for preciso, com a certeza no espírito de que, nas situações críticas, o bom ânimo ajuda.

Assim, cá estou. Aqui, ao teu dispor.
Um homem de Lisboa
José Sá Fernandes

Lisboa, 19 de março de 2020

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate