A década de 20 de há um século nasceu num cenário ambíguo, misto de esperança, incerteza e desespero. As democracias liberais - Estados Unidos, Reino Unido e França - tinham saído vencedoras de uma longa guerra sangrenta que hipotecou uma geração, e resultou no colapso dos grandes impérios europeus - Alemanha, Austro-Hungria e Rússia. A nova ordem internacional, negociada em Paris e nos seus arredores pelos vencedores, deveria assentar no primado da liberdade e transparência, e numa nova organização pensada pelo presidente americano Woodrow Wilson, a Sociedade das Nações.
O triunfo dos regimes liberais foi, porém, ilusório. Os efeitos da grande guerra continuavam bem visíveis por quase toda a Europa: destruição, desalojados, migrações forçadas, desemprego, inflação galopante… Por entre a incerteza e o desespero, muitos começaram a apontar o dedo à “permissividade” da democracia liberal, e à “fraqueza” das suas instituições e práticas. Greves e contestações passaram a fazer parte do dia a dia, tanto dos novos estados que resultaram dos impérios centrais, quanto dos vencedores da guerra.
A leste, a Rússia soviética estava mergulhada numa sangrenta guerra civil entre “vermelhos” e “brancos”, e a Alemanha, formalmente um regime constitucional e parlamentar, já tinha experimentado uma mal sucedida revolta marxista (espartaquista, em 1919), e as milícias de extrema direita continuavam a agitar as ruas das suas principais cidades. A corrupção e a crise económica foram o mote para o toque de finados do parlamentarismo liberal em Itália (1922), e em Espanha (1923). Em ambos os casos, o sistema liberal caiu por via institucional: em 1922, um renitente Vitor Emanuel III nomeou Mussolini para a chefia do governo italiano e, em 1923, Afonso XIII de Espanha, um militarista, entregou a chefia do ministério ao general Primo de Rivera, líder de um pronunciamento militar anti liberal.
Em meados da década, o panorama parecia menos angustiante. Gustav Stresemann, um político alemão que, infelizmente, morreu cedo demais (1929), logrou integrar a Alemanha na Sociedade das Nações e aproximar os governos de Paris e Berlim, o que lhe valeria, em conjunto com o primeiro-ministro francês Aristide Briand, o prémio Nobel da Paz de 1926. Com o dinheiro emprestado pelos Estados Unidos, a Alemanha recuperou do trauma da grande guerra, e Berlim afirmou-se como uma referência cultural e boémia. Em Itália, em Espanha, e em Portugal (a partir de 1926), os regimes autoritários e militaristas punham “ordem” no Estado e nas ruas, e mantinham uma política externa sensata, que não ameaçava a ordem europeia nem as democracias liberais. Até a ameaça da distante e enigmática União Soviética parecia então apenas uma miragem. Lenine morreu em 1924, e o seu improvável sucessor, Estaline, abdicou do expansionismo em detrimento da consolidação interna.
Era tempo para a Europa entrar por fim nos “loucos anos 20”. A guerra era um pesadelo já distante, que todos queriam esquecer e ninguém queria reviver. O contínuo crescimento industrial dos Estados Unidos, e a exploração de novos recursos (sobretudo o petróleo do médio oriente, onde França e Inglaterra tinham mandatos), aumentaram o crédito disponível e a riqueza dos estados e de particulares. Livres de espartilhos, os europeus dançavam o foxtrot, o swing, e ouviam jazz, nos bares e cabarets de Londres, Paris e Berlim. Por sua vez, os regimes autoritários e militaristas eram tolerados, e mesmo aplaudidos, como os restauradores da ordem social, política e financeira. Nos últimos anos da década, apenas França, Inglaterra e a Alemanha, mantinham regimes democráticos-liberais, um quase anacronismo num continente dominado por ditaduras.
No entanto, a ilusão dos “loucos anos 20”, viria a cair por terra num único dia. A 29 de outubro de 1929, deu-se o crash de Wall Street, a bolsa de valores de Nova Iorque. A “5.ª feira negra de Wall Street” teve um profundo impacto em todo o mundo ocidental, e mostrou os perigos de relações internacionais baseadas apenas em interesses financeiros e comerciais. Durante a década de 1920, os Estados Unidos afirmaram-se como a maior potência económica à escala mundial, mas permaneceram afastados da política internacional. Logo em 1919, o Senado rejeitou a integração na Sociedade das Nações e, durante a década, os Estados Unidos continuaram a rejeitar o multilateralismo, isto enquanto assinavam diversos acordos comerciais bilaterais, que se adivinhavam altamente vantajosos.
Quando se deu o crash de Wall Street, as economias dos Estados Unidos e da Europa estavam profundamente interdependentes, mas o comprometimento político era nulo. A crise americana cortou o crédito à Alemanha, e acabou definitivamente com as ténues esperanças francesas de vir receber do governo de Berlim parte das compensações de guerra impostas em 1919. Na Europa e na América do Norte, a opção exclusiva pelos tratados comerciais bilaterais sem regulação nem comprometimento político ou de valores, resultou em greves e desemprego, e no regresso da instabilidade política e social. Daí ao isolacionismo, e ao triunfo da demagogia e do populismo foi um pequeno passo, que abriu caminho para a definitiva afirmação de regimes autoritaristas e expansionistas, durante a década de 1930. Cem anos depois, no início de uma nova década de 20, estes são factos que vale a pena relembrar.
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