Jair Bolsonaro vai governar o Brasil. Sem surpresa e com resultados muito próximos dos das sondagens e projeções à boca da urna, o capitão reformado, do Partido Social Liberal (PSL), foi a escolha de 57.797.456 cidadãos, isto é, 55,13% dos votos expressos. Pelo Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad somou 40.040.819 votos (44,87%). Firme vitória por mais de 10% do novo Presidente, protagonista de uma campanha atípica em que foi alvo de um ataque à facada e nã quis deabter, sobre um adversário que foi sempre um número dois por impedimento judicial de Lula da Silva, obstinado até à última em aparecer no boletim. A eleição já lá vai.
O Brasil vive tempos novos, insólitos, desconcertantes. Que outro adjetivo para a reza de mãos dadas assim que o novo presidente se viu eleito? Dizem que Deus é brasileiro e Bolsonaro diz-se salvo por Ele. À míngua de certezas sobre a existência e propósitos da divindade, agarro-me aos factos: não tenho memória de tanta referência ao sagrado numa eleição de um Estado laico. O apelo religioso de Bolsonaro funcionou; a colagem tardia ao mesmo ensaiada por Fernando Haddad não. O novo líder do maior país lusófono quer dar-se ares de homem providencial. No Brasil ou alhures, à direita ou à esquerda, fico de pé atrás.
Para lá do fervor místico, foi notória no discurso de vitória a ausência do ódio que Jair Bolsonaro destilou em campanha. Racismo, sexismo e promessas de atropelar o Estado de Direito deram lugar a juras de proteger Constituição, democracia e liberdade. Tranquilização? Mulher, negro ou homossexual têm motivos de ralação, após campanha violenta em palavras e atos. O novo chefe de Estado promete ainda eliminar o défice (mercados à escuta) e descentralizar. “Mais Brasil e menos Brasília”, proclama quem terá governadores aliados em 14 dos 27 estados. Segurança, emprego e paz social estão na lista dos deveres.
Há contas a fazer. Bolsonaro chega ao Palácio do Planalto sem maioria parlamentar. Num hemiciclo fragmentado que terá mais de 20 bancadas, o Partido Social Liberal (de que só é membro há meses, o novo em que se inscreveu) é o maior na Câmara dos Deputados, mas com apenas 52 dos 513 assentos. No Senado, ocupa 4 de 54. O jornal “Estado de São Paulo” calcula em 191 deputados a soma das forças políticas que o apoiaram nesta segunda volta. Governabilidade exige, pois, negociação. “Rodízio democrático”, chama-lhe “O Globo”. Fazer da alternância alternativa.
Alcançar pactos está no cerne da democracia, a tal que Bolsonaro promete defender, a tal que se teme que mate. A moeda de troca passa por cargos (governamentais ou parlamentares) e medidas caras a certos deputados e interesses. Três são apontados como pilares do futuro chefe de Estado: “Bíblia, boi e bala”. O presidencialismo minoritário brasileiro incentiva compra de votos entre partidos sem identidade. Logo, corrupção. Escrevia alguém nas reações preliminares à contagem de votos que continuaria a haver democracia e corrupção no Brasil. A segunda é certa, retorqui.
Vai ser testada a solidez das instituições democráticas brasileiras, escassos 28 anos após as primeiras presidenciais por sufrágio universal. Bolsonaro é só o quinto presidente eleito diretamente desde então e dois dos quatro que o antecederam foram depostos pelo Congresso, estando outro na prisão após condenação por corrupção que muitos consideraram política. A relação que o novo líder tiver com a Câmara e o Senado, a Justiça e as Forças Armadas e de segurança será chave para perceber se o Bolsonaro dos próximos quatro anos será o neofascista da campanha eleitoral ou o líder melífluo desta noite.
Do outro lado, Haddad tenta catalisar a resistência. Após um minuto de silêncio pela democracia, anuncia oposição responsável. Terá dificuldade em encontrar convergentes com o seu Partido dos Trabalhadores, desgastado por 14 anos de poder e a mácula da corrupção. Reconciliar o Brasil é premente e devolver confiança aos cidadãos imperativo, após um escrutínio que bateu recordes de votos não-expressos (2,1% de brancos, 7,4% de nulos). Mais de dez milhões em 147 milhões. Somados aos 21,2% de abstencionistas (apesar do voto obrigatório), um terço do país ficou de fora.
Nota final para a inevitável morte política de Luiz Inácio Lula da Silva. O homem que tirou milhões da miséria e elevou o estatuto do país na cena global, de quem se falou para secretário-geral da ONU e que até ao travão judicial liderava todos os estudos de opinião para estas presidenciais só teve direito a uma mençãozinha tímida no discurso de derrota do substituto, que já o deixara cair na campanha da segunda volta. Triste é o fim, numa cela de Curitiba, do percurso político de um lutador, outrora herói, que em 2002 encarnou esperanças de mudança tão radical como o inimigo que hoje arrebata a cadeira que foi sua.
Do lado de cá de tanto mar, apetece lembrar Chico Buarque (o Brasil tem tanta coisa boa!) e mandar nova e urgentemente algum cheirinho de alecrim.
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