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“The Bear” também atesta que o excesso de criatividade pode ser prejudicial à vida saudável de um espetador

Jeremy Allen White e Ayo Edebiri em “The Bear"

Êxito surpreendente do canal FX (o que mais riscos corre na grande família Disney), a série de meia-hora “The Bear”, que estreou há pouco a quarta temporada (que estão na plataforma Disney +) é um media darling dos últimos tempos. Em traço largo, é sobre a vida nunca fácil e determinada de um chef que volta para casa e pega no negócio de família (um boteco de sanduíches) para o converter num restaurante de fine dining, apesar de não ter um tostão furado nem uma equipa com formação adequada. Tem a vontade, que costuma ser um motor potente na ficção. Os argumentistas, esses, têm o entusiasmo e a vontade de nos falar de muita coisa, da gentrificação à adição, do trauma ao peso da burocracia, de dinheiro, de famílias, de stress, confusão e claustrofobia. E de comida, críticos e fornecedores.

Inscrita como comédia nos principais prémios, “The Bear” foi arrebatando tudo, também porque a competição não parecia estar à altura. Foi uma coisa de se ver: a crítica quase inteira foi (metaforicamente) de joelhos a Fátima agradecer a graça de poder ter uma série assim.

Assim, como?



Começa aqui a dificuldade, porque desde cedo “The Bear” é um diamante mal polido, de definição fugidia, além de ser sobre um restaurante e os seus bons (e sobretudo) maus momentos. A série tem episódios inteiros francamente bem conseguidos (em especial na primeira e segundas temporadas), é impossível dizer que é falhada, que é má, que é para evitar. Mas, como aqueles amigos que vamos percebendo serem desnecessariamente complicados e embirrentos, ainda que capazes de surpresas inauditas, “The Bear”, requer sempre mais do nosso compromisso do que esperaríamos. Como o amigo da guitarra que chega tarde, esqueceu-se que era ele quem devia ter trazido o pão, nunca tem cigarros, pede-nos sempre dinheiro para o táxi e usa a nossa tolha para ir à praia.

É preciso compreender que o mercado americano é tão hegemónico culturalmente, tem tantos recursos, que um canal como a FX permite carta branca aos criadores e àqueles a quem encomenda séries. A FX sabe que vai sempre haver qualidade e mercado para as suas produções. Vai daí, “The Bear” não tem filtro. Atores muito bem escolhidos, realização inteligente a sugerir erudição, montagem criativa, só que “The Bear” era suposto ser também televisão, que é, apesar de tudo, um meio com uma determinada facilidade implícita de se aceder. Ora aqui, e demasiadas vezes, a produção apresenta-se como uma estravagância, há uma inclinação para uma complexidade que nos obriga a um nível de concentração que a série não deveria sugerir. Apanhamos bem as carambolas entre os personagens, mas a cada ator terá sido pedido uma interpretação com tanta nuance que acabamos por nos sentir exaustos no fim de cada episódio só de estar a seguir dois ou três personagens a discutir sobre fornecedores de rúcula.

Talvez pela primeira vez na minha vida, nunca consegui ver mais do que dois episódios de cada vez, por cansaço, saturação e por querer sair dali para apanhar ar. Sim, em muitos casos, há cenas e planos maravilhosos, uma banda sonora saborosa, atores tão bem dirigidos que parece que estamos a ver um Rothko. O problema é que no episódio seguinte, alguém parece pegado nuns lápis de cera e pintado uma casa, um sol e uns montes em cima do quadro.

O restaurante era o The Original Beef, é agora The Bear (porque a família ficcional se chama Berzatto, a alusão a um hipotético urso deriva da abreviação do nome), cuja nova ambição cultiva a ideologia da cozinha como recruta dos Comandos, em que tudo deve ser uma obra tão prima da qual ninguém, nem quem vai comer os pratos, está à altura.

Nós, os espectadores, estamos ali no meio da trupe liderada por Jeremy Allen White, um ator que conhecerão de “Shameless” /”Sem Limites” (na Netflix), e que se apresta para interpretar Bruce Springsteen num filme que chegará um destes dias. Carismático, expressivo, faz tão bem de Carmy, que os próprios filhos do ator não acreditam que ele não seja um chef.

Este é um caso exemplar de prestige drama, de Peak TV (expressão usada para referimos séries de muita qualidade e que pode ser traduzida por televisão de topo, de cume – um dizer inventado pelo chefão da FX, refira-se) em que o sucesso subiu à cabeça. Depois de uma primeira temporada surpreendente e a merecer grande parte dos encómios, lançada matreiramente como uma comédia e beneficiando desse a priori, começou a deslizar no narcisismo e tornou-se naquele amigo que aparece com em todo o lado com a guitarra e nos enche sempre o sofá de cinza, enquanto nos mostra a última coisa que compôs, depois de ter entornado vinho no tapete.

“The Bear” quer ser “The Bear”, uma daquelas séries que nos dizem pressentir que virá a ser um clássico, porque ver pequenas ervas a serem colocadas em vieiras por personagens que têm sempre mais um problema, um tema, um trauma, para somar aos 45 que já vinham do passado, tem de valer a pena. Exige que sejamos missionários, nunca esconde que o caminho é cheio de armadilhas e dúvidas de fé, parece que faz de propósito.

A FX é um canal que deu ao espectador proezas como “The Shield”, “Better Things”, “Damages”, “Fargo” (a série), e “The Americans”, talvez a melhor série que muita gente nunca viu ou sequer ouviu falar. Este “The Bear” não é superior a nenhuma destas, beneficia de recency bias, aquela tendência tão humana de privilegiar o mais recente em detrimento do mais antigo e do imenso hype que a acolchoa.

E, no entanto, a verdade é que se continuamos a abrir a porta e a emprestar dinheiro ao amigo que nos enche o sofá de cinza, porque queremos muito continuar a ser amigo dele, “The Bear” também nos continua a puxar para dentro daquela cozinha, aquelas ruas de Chicago, a casa daquelas pessoas.

“The Bear” é assim. Nós, somos assim.

SUGESTÃO

“Os Amigos de Alex” / “The Big Chill” (Filmin)

E se quase todas as séries de que gostamos muito tivessem qualquer coisa de um filme americano de 1983, quase todo passado com pessoas à conversa numa casa? Alex (Kevin Costner) morre por suicídio e os amigos vêm de longe e voltam a juntar-se para exéquias e reencontros. A partir daqui, num filme com 42 anos, até parece que estamos a ver a série da moda.

Até para a semana.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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