Há a escola da vida e a escola da prisão. Um estudo publicado num livro sobre delinquência juvenil conclui que a intervenção do sistema judicial com menores de 18 anos “é uma armadilha” que potencia a reincidência no crime já na vida adulta.
A autora, Josefina Castro, sugere que a idade de responsabilização penal passe dos 16 para os 18 anos.
E ficamos a saber que em Portugal, há 22 menores de idade nas cadeias.
Isto a juntar ao facto de que o número de jovens a cumprir pena nas prisões aumentou 45% desde 2019, que Leiria concentra a maioria, e que nunca houve tantos rapazes presos pelo crime de abuso sexual.
Esta sugestão de mudança faz todo o sentido e deve ser discutida seriamente nas mais altas instâncias.
Prisão não é lugar para menores
Importa que se apresentem outras respostas alternativas para os jovens delinquentes, que não o cumprimento de penas de prisão.
Sob o risco de transformarmos estes pequenos rufias em grandes criminosos, sem lhes darmos a oportunidade, enquanto sociedade, de escaparem ao destino e contexto em que nasceram.
Os berços do crime
Conheci há mais de dez anos, em reportagem, vários casos desses que ilustram uma parte desta realidade.
Biografias tão duras que nos fazem acreditar que também nós, naquele contexto, criados em berço de lata, abuso e porrada, poderíamos ter virado marginais.
Falo de meninos e jovens rapazes vítimas e testemunhas de violência doméstica, mimados ao soco e ao pontapé, a somar a outras carências económicas e afetivas que não imaginamos.
Miúdos que escaparam do inferno familiar para a rua, onde aprenderam a sobreviver.
E quando lhes calhava na sorte serem apanhados pela polícia em maus lençóis depois de completarem os 16 anos, já não iam para centros de menores, mas sim para trás das grades, subindo de estatuto no mundo dos fora da lei.
Na escola da prisão, os jovens aprendiam a ganhar casca grossa, a endurecer, apanhavam as manhas e esquemas com os graúdos, formando-se na bandidagem mais ‘hardcore’.
Depois, quando saíam em liberdade, cometiam crimes ainda mais cabeludos. Num ciclo vicioso de entra e sai dos estabelecimentos prisionais.
Marco, o “anticristo”
Recordo-me de Marco Moreira, “o anticristo”, que conheci na cadeia do Linhó, numa grande reportagem que assinei em 2011 para a Revista do Expresso, com o fotojornalista e meu amigo Tiago Miranda.
O retrato que o Tiago fez dele, foi capa do jornal e integrou um dos trabalhos que mais me marcaram. De braços abertos, desnudo, com uma cruz ao peito, a recriar a pose de Cristo, Marco exibia um corpo profano, marcado por muitas dores, chagas e culpas.
Quando o conheci, Marco era um tipo carismático, de cabelos compridos, olhos brilhantes do menino que já não era (e que nunca teve oportunidade de ser) com muita lábia, e o corpo preenchido com tatuagens marginais, como um livro autobiográfico escrito na pele, narrado com imagens e frases que contavam a sua espinhosa e sofrida história de vida.
A escola da rua
Uma bússola a arder, alguns cifrões de escudos, dados e cartas foram os primeiros desenhos que fez no corpo, aos 16 anos, a traduzirem o seu universo marginal.
Nessa altura, Marco já era formado pela escola da rua. Vendia droga no problemático bairro da Amoreira, na Moita. Andava armado, roubava motas, pintava-as para as revender e entretinha-se a jogar à batota nas esquinas.
Os cifrões no braço esquerdo traduzem os milhares que lhe passaram pelas mãos. E o poder que alcançara no bairro.
“Eu era o patrão. Dominava a minha zona e tinha muito dinheiro no bolso. Chegámos a sacar 35 mil contos num assalto a uma casa de penhores.”
Aos 4 anos fugiu de casa
Marco aprendera a endurecer logo aos 4 anos, quando se viu obrigado a dormir ao relento, “dentro de contentores”, para escapar aos arraiais de porrada do pai alcoólico, que arreava na mãe e o espancava com a mangueira do gás.
Passou a viver com a avó, mas não por muito tempo, porque aos 9 anos foge para Lisboa, sem destino certo.
Marco cresceu assim, ao deus-dará. Com jeito para o desenho, e para dar nova vida às motos ‘fanadas’, nunca passou fome.
“De uma maneira ou de outra caía sempre dinheiro no meu bolso.”
Preso logo aos 16
Aos 16 anos é detido por furto de veículos na estação de comboios do Barreiro.
Esteve um ano e meio na cadeia do Montijo. Foi lá que um indivíduo conhecido como “O Dentista” — pelo massacre que era estar nas mãos dele — lhe desenhou um dragão no ombro esquerdo, símbolo de conhecimento. “Eu era um puto e sabia demasiado da vida fora da lei.”
Às tantas, Marco consegue fugir da cadeia, abrindo um buraco nas telhas do estabelecimento.
Quinhentos metros mais à frente apanha uma moto e arranca para longe. Esteve dois anos fugido, em Espanha e depois Marrocos.
No país dos camelos houve um dia que engoliu muitas bolotas de haxixe embrulhadas em saquinhos. Mas ao passar pela polícia da fronteira entrega-se.
Em maio de 1999, com 18 anos, sai com o perdão presidencial de Jorge Sampaio. Sem amparo, regressa ao mundo que conhecia, às más companhias e aos assaltos.
O crime e o castigo
Num dos episódios, surpreenderam um guarda-noturno; a situação descontrolou-se e bateram-lhe mortalmente, provocando-lhe uma fratura na traqueia. Marco acaba detido dias depois. Acusado de homicídio, é condenado a 18 anos de prisão.
Quinze dias mais tarde, nasce a sua filha, Luana. Por isso, tatuou na sua coxa direita uma grande cruz com o seu nome ao alto. “Ela é sagrada.”
Pouco depois de entrar na prisão, um colega tatuou-lhe no peito a face de um lobo, uma referência à alcunha de “Lobo Mau”, que ganhou na prisão por fazer desaparecer os objetos dos outros presos sem deixar rasto.
O tatuador da prisão
Como Marco sempre teve bom traço e mão firme, passou a tatuar-se a si próprio e aos outros reclusos. Cobrava entre três a cinco maços de tabaco por cada trabalho feito com a máquina artesanal que escondia na cela.
Em 2001, quando faleceu a sua avó, prestou-lhe tributo no antebraço numa outra cruz: “Maria de Lourdes, rest in peace”, (descansa em paz). E adicionou as palavras: “Only God can judge me”, (só Deus me poderá julgar).
“A minha condenação foi injusta. Estive no meio da confusão, mas não matei ninguém.”
Um diabo sem nada a perder
Foi movido pela ira que desenhou dois diabos no corpo. Um no tornozelo, a empunhar uma forquilha, e outro mais tosco nas costas, feito por um colega, com o código penal e o número da besta, 666.
“Eu era um diabo sem nada a perder. Com uma pena de 18 anos, estava desorientado. Mas agora esse diabo reformou-se.”
Também nas costas mandou colocar um pistoleiro com “um grande canhão”, para alertar os desavisados.
Qual Robin Wood, Marco garantiu-me que roubou “todos os traficantes” da sua zona, antes de ser preso. “Surpreendia-os à hora do jantar, quando estavam à mesa com a família.”
No abdómen acrescentou “Outlaw” (fora da lei) e “Rebel Soul” (alma rebelde). E, no antebraço, assumiu as malandragens da carne, com a frase: “babe, i´m for real” (querida, sou real).
O sonho do circo
Os dois palhaços que Marco tatuou nos bíceps remetem para a vida artística que sonhou para si desde pequeno. E representam a sua adoração pelo Chapitô e as artes circenses, onde chegou a receber formação de clown, malabarismo, e capoeira.
Mas, segundo me contou, a dado momento da sua infância, teve de abandonar essa formação, porque o tribunal lhe destinou um centro de menores…
O casamento no Linhó
Recordo que um dos dias mais felizes da sua vida ficou gravado na sua perna esquerda: O seu casamento, em 2009, realizado na prisão. Nesse dia, Marcou vestiu-se de branco, com roupa de linho. No Linhó. “Estava com estilo de menino da praia.”
Mas sem liberdade precária à vista, o casamento ruiu. Antes disso, chegou a ter com a mulher relações sexuais na sala de visitas. O truque era sentar-se na mesa do canto, debaixo da câmara de vigilância e longe dos olhares do segurança.
“Vem de saia, Maria, que hoje a gente conversa.”, avisava ao telefone.
A futura tatuagem
Quando falámos dessa vez, já tinha em mente a próxima tatuagem: “Uma pomba a esvoaçar através das grades partidas.” A pensar no fim da sua pena e na liberdade, que terá acontecido há dez anos, em 2015.
Nunca mais soube do Marco, mas espero que, de alguma forma, se tenha libertado de vez dos diabos e infernos que o atormentavam desde pequeno, que o levaram a desperdiçar boa parte da vida atrás das grades.
Muitas das histórias desenhadas na pele de Marco contam perdas, ausências e falhanços. Mas não falhou só ele, falhou todo um sistema com ele. Desde que Marco era um menino de 4 anos a dormir escondido num contentor, ao frio e ao relento, para escapar aos maus tratos do pai.
CONVERSEI EM PODCAST COM…MANUEL PUREZA
É o realizador da série satírica “Pôr do Sol”, que colocou boa parte do país a rir com a família Bourbon de Linhaça e um certo absurdo e ridículo que ainda hoje se reconhece nas fórmulas gastas de muitas telenovelas.
Manuel Pureza assume que, depois de dez anos a dirigir novelas, a série que assinou a gozar com estes formatos foi a sua purga de um modelo que para si não faz mais sentido. “A novela é estupidificação, quando podia ser catapulta, arma de educação, entretenimento do bom e reflexo de quem somos.”
Na sequência do sucesso de “Pôr do Sol”, Manuel realizou agora a série “FELP”, que acaba de estrear no Canal 1, da RTP. Uma comédia que junta actores reais e bonecos de esponja, que afirma ser sobre a diferença, identidade e empatia. Onde não falta ironia, subversão e tangência com assuntos que polarizam a sociedade.
A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.
E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.
É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que deseja e gosta!
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com