A Beleza das Pequenas Coisas

“Agora que temos liberdade, o que fazemos com ela?”

Uma mulher com um mapa de vida vincado no rosto, de lenço preto apertado na cabeça, é inquirida pelo repórter pelas suas motivações para votar.

“Quero que isto vá para a frente. Que seja bom para o país. Que dê vida prá gente. Não tenho filhos. Mas para aqueles que tenham filhos!”.

D.R.

É uma das milhares de pessoas que saíram de casa na madrugada de 25 de abril de 1975 para engrossar as longas filas de espera de uma multidão que queria assegurar que iria colocar a cruz numa urna de voto pela primeira vez em toda a vida. O que antes era apenas sonho e utopia, tornou-se real para um país inteiro.

O ato em que toda a gente vale o mesmo

Entre aquelas gigantes centopeias de gente, novos e velhos, analfabetos ou doutores, pobres e ricos, trabalhadores do campo ou grandes proprietários, valiam todos e todas exatamente o mesmo na hora de escolher o futuro para Portugal. Parece que andamos a esquecer isto. Sobre a importância e o poder do voto. E o valor da democracia. Foi para isso que tantos duramente lutaram e tantos morreram a sonhar.

D.R.

O coração da democracia

Há precisamente 50 anos, inaugurava-se o coração da democracia, na sua forma mais nobre e essencial, o ato de votar, de forma livre e para toda, toda a gente.

Antes disso havia eleições, mas não eram livres. Eram fortemente condicionadas, só acessíveis a uma minoria privilegiada e largamente manipuladas pelo Antigo Regime, com fraude organizada, que perseguia, prendia, torturava e matava os opositores de forma infame, próprio de uma ditadura.

As imagens do momento das primeiras eleições em liberdade, que vi há poucos dias na Fundação Calouste Gulbenkian, no valioso documentário “Haverá Eleições”, da cineasta Cláudia Varejão [autora de filmes brilhantes como “Lobo e Cão, “Ama-San” e Amor Fati”] são verdadeiramente emocionantes, comoventes até, pela adesão em massa e pelo brilho nos olhos de uma população inteira que finalmente saiu da sombra e ganhou voz e horizonte.

D.R.

Um país cinzento

Mas revela um país ainda a preto e branco, com muitas penas e fados por libertar, com demasiada pobreza e analfabetismo. “Dentro do país parecia-me que tudo era cinzento.”, recorda Maria Antónia Palla, uma das primeiras mulheres jornalistas em Portugal, feminista e opositora do regime.

As mulheres do campo, de lenço na cabeça, a parecerem velhas antes do tempo, fizeram uma pausa nos trabalhos da terra e das lides domésticas e não faltaram à chamada.

E muitos homens, operários e camponeses, de chapéu, sem saberem ler nem escrever, também largaram naquele dia as máquinas e as enxadas, para se meterem na ‘bicha’ (termo muito usado pelos repórteres da época) para plantarem com o seu voto uma vida melhor, com mais Igualdade e Justiça.

Cumpriu-se assim a madrugada que Sophia esperava. Foi um novo “dia inicial inteiro e limpo”, o 25 de abril de 1975, um ano após o golpe de Estado militar - a nossa vibrante e feliz revolução dos cravos -, quando seis milhões de pessoas emergiram da noite e do silêncio, para votarem nas primeiras eleições livres que o país teve.

Mário Soares, Salgado Zenha, entre outros. D.R.

Nunca se votou tanto como em 75

Por outras palavras, 92% dos cidadãos recenseados colocaram a cruz no futuro em que acreditavam para o país (a abstenção ficou-se por uns residuais 9%).

Um número estratosférico de votantes (5,7 milhões) a traduzir o entusiasmo massivo de um povo que queria um Portugal novo, democrático e a cores, entusiasmo esse que nunca mais se repetiu até hoje.

A campanha eleitoral começou a 2 de abril de 1975 num ambiente de grande complexidade e radicalização política. Estava a inventar-se um novo futuro para o país, com novas regras e uma nova Constituição.

Apesar destas condicionantes, as eleições decorreram de forma exemplar e constituíram um passo único e decisivo no processo de construção da democracia em Portugal.

No documentário assinado pela Cláudia Varejão, que aconselho a toda a gente que veja (que estará patente na Gulbenkian, junto com uma exposição com curadoria da cineasta Catarina Vasconcelos e do politólogo Pedro Magalhães), porque sem memória não há futuro, ouvimos ainda Maria Antónia Palla afirmar convicta que “foram elas que fizeram a revolução. Eles fizeram um golpe de Estado.”

Nesses tempos quentes de Abril, ficou uma questão em si que reverbera até hoje. “Agora que temos liberdade, o que fazemos com ela?”

O jornalista Joaquim Letria D.R.

Spínola vetou Sophia

Fiquei a saber aí outro absurdo, só possível no tempo da escuridão e opressão.

O escritor e jornalista Augusto Abelaira, personagem singular, de cachimbo fumegante na boca, que comentava essas primeiras eleições livres nos estúdios da RTP, começou por considerar “ótimo” o facto da poetisa Sophia de Mello Breyner ter sido eleita deputada pelo Partido Socialista para a Assembleia Constituinte.

E, a propósito, recordou a história que circulava sobre Sophia, em que constava que anos antes ela esteve para ser embaixadora de Portugal em França.

Mas o general Spínola, o homem do monóculo com lente machista, terá vetado a ideia. “Com o argumento de que uma mulher em Paris…”

- “Perde-se” - ironizou de imediato, na ocasião, o jornalista Joaquim Letria, que conduzia a emissão em direto, ao ouvir tal relato.

Abelaira, dá nova cachimbada para avivar a memória, e não deixa de afirmar que Sophia teria dado uma “espantosa representante de Portugal em Paris.”

Certamente. Mas as vistas de Spínola eram bem mais curtas e estreitas.

Capitão Salgueiro Maia D.R.

Com que demónios se votará?

E não mais esqueço o que ouvi do cientista político Pedro Magalhães, ao recordar nesse mesmo filme, uma das poucas entrevistas dadas em 74 por Salgueiro Maia.

Discutia-se com ele a ideia de adiar as eleições. Alegava-se que o povo não estava devidamente informado, estaria sob influência dos caciques, especialmente no norte, achavam que era demasiado ignorante, despreparado.

Ao ouvir tal argumentação, o Capitão sem medo terá dito:

“Fizemos esta revolução para dar ao povo o poder dele se exprimir. Se o povo quiser ir para o inferno é para o inferno que iremos.”

Esta é uma frase fortíssima que atravessa os tempos e arde agora à beira de novas eleições legislativas.

Com que demónios a população irá votar no próximo dia 18 de maio? Haverá muitas pessoas votantes a querer ir para o inferno com a sua cruz?

Na última sondagem Expresso/SIC o céu, para a maioria dos portugueses, será uma maioria absoluta, embora se ache que o governo que caiu fez um mau trabalho. Mas a avaliação final será nas urnas, na hora de votar.

Hoje é dia do país sair de novo à rua para celebrar Abril e a Liberdade, 51 anos depois da revolução dos cravos. Que se reúna de novo uma grande multidão.

“É a cultura, estúpido!”

O primeiro-ministro decidiu mudar a data dos festejos oficiais na sua residência oficial. Para ele, este ano o 25 de Abril festeja-se no dia 1 de maio, Dia do Trabalhador, mesmo em cima do arranque oficial da campanha.

A decisão foi justificada pela situação de luto nacional e “por respeito à morte do Papa Francisco”.

Diria que o Papa Francisco abençoaria todos os festejos que celebram a liberdade para todos.

Para comemorar Abril e todas as liberdades, foi convidado para a festa de 1 de maio, o inesperado Tony Carreira num ‘piquenique’ alternativo com cravos e canções de amor em Belém. Escolhas. Como dizia o outro, “É a cultura, estúpido!”

“Despolarizem, filhos”

Por fim, recordo o cadáver esquisito, vivo, pulsante e livre que 11 poetas e escritores escreveram a meu pedido há precisamente um ano, sobre o 25 de Abril.

E destaco em particular o texto de Filipe Homem Fonseca, que parte uma série de loiça velha e imprestável:

“Hoje há quem nos diga ‘mas lutem baixinho, não acordem os turistas e os nómadas digitais, vão mais para ali que é para não se verem as tendas dos que vivem na rua, olhem que dá mau aspecto, respeitinho é muito bonito, boas maneiras à mesa mesmo sem nada para comer, partir a louça é que não, pensem como vos dizemos para pensar, vivam como vos deixamos viver;

despolarizem, filhos, despolarizem, a liberdade de expressão tem as costas largas quando é para impormos limites à liberdade dos outros, já não se admite fora da tradição, ai a tradição, ai; o corpo é de quem?, é de quem, o corpo?,

porque é que o corpo é de quem o tem?, então e a família?, a família só é família se for tradicional, tomem lá a conversa de que nos querem obrigar a coisas mesmo quando só querem é que não vos obriguemos a coisas que só a vós dizem respeito;

tomem lá o discurso de que vivem acima das vossas possibilidades, agradeçam terem emprego sequer, engulam esta de que os imigrantes explorados é que têm a culpa da crise, esqueçam os lucros da banca e os salários miseráveis, tomem lá banda larga e muito circo, chupem gourmet, chupem low cost, roam um papo-seco e façam filhos, que esta Disneylândia precisa de quem produza riqueza para os accionistas; em cada rosto igualdade?, não: em cada filho um colaborador futuro, trabalhador não, co-la-bo-ra-dor, um colaborador é mais empenhado, o empenho prescinde direitos, querem que isto avance ou não querem?,

um passo atrás de cada vez, 50, 49, 48, sempre a puxar para trás, rumo a 74, a antes do 25, então não se estava tão bem?, antes é que era’; e a resposta é, hoje e sempre, só pode ser: não, não, não, não passarão, não passarão, não passarão.”

CONVERSEI EM PODCAST COM…ANTÓNIO COSTA SILVA

Bastidor da gravação do podcast "A Beleza das Pequenas Coisas" com o ex-ministro da Economia António Costa Silva
José Fonseca Fernandes

Já o chamaram de “senhor PRR”, por ser o autor do plano estratégico de recuperação económica para Portugal, e foi ministro da Economia no último governo de Costa.


José Fonseca Fernandes

António Costa Silva fala dos vários desafios deste ano forte em eleições e do risco da Europa se fossilizar e se transformar num museu. Crítico da corrupção que se perpetua em Angola, a terra onde nasceu, recorda os três anos em que foi preso político e cruelmente torturado pelo MPLA.

“O homem é o lobo do homem. Sem democracia vem o instinto predador.”

Ouçam-no aqui.

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, bom 25 de Abril e saborosas escutas e leituras!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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