Há imagens que não nos largam nunca mais. São como um tiro disparado contra outra pessoa, mas a bala fica alojada na nossa memória.
Uma mulher atravessou o corredor da carruagem do comboio onde eu estava, com um enorme televisor. O plasma era quase maior do que ela.
Ia acompanhada do filho, um rapaz que teria uns 7 ou 8 anos. Tinham entrado na Gare do Oriente, e seguiam de Lisboa para norte, como eu. Sentaram-se uns lugares adiante.
A mãe, o filho e o televisor
Assente no colo de ambos, o televisor fez desaparecer o rapaz do meu campo de visão. Estranhei a situação, mas mergulhei novamente os olhos nas notas que estava a escrever.
Voltei a ouvi-la pouco depois. Estava perturbada, lançava frases soltas para o ar, para o filho, para quem a quisesse escutar. Talvez por pudor, ela não falava alto e eu não conseguia ouvi-la bem. Prestei mais atenção. Uma dessas frases foi sacudida com mais balanço e atingiu-me. “Tive de sair de casa…”
Nisto a mulher levantou-se e dirigiu-se para o fundo da carruagem. O filho permanecia agarrado ao plasma como se apertasse um urso de peluche.
A senhora estava de fato de treino e notava-se que tinha sido recentemente agredida no rosto, com marcas avermelhadas e roxas na cara, que a seu tempo iriam ganhar outra cor.
Meteu conversa com outra mulher que estava num lugar do canto, conversaram baixinho. Dava para perceber o assunto, a violência do episódio, sem se ouvir uma única palavra.
Afugentou-o com uma faca
Respirei fundo e decidi ir ter com elas. Quis saber se era preciso ajuda.
A mãe da criança contou-me que acabara de fugir de casa. Que apanhara o marido em cima do filho, de calças para baixo. Que, de cabeça perdida, pegara numa faca e afugentara o companheiro.
Meteu a vida em sacos, ligou para a polícia, para a segurança social, para a família e escapou no primeiro comboio que apanhou. Julgo que o marido lhe ligou um sem fim de vezes durante esta viagem. Ela nunca cedeu.
Quantas vezes terão sofrido violência doméstica ou sexual?
A mulher levou o televisor consigo, porque o filho gostava de ver os bonecos e quis trazer o máximo que podia. Garantiu-nos que tinha quem a acolhesse, e que tinha a queixa feita.
E dizia baixinho, em lágrimas, o que não sei descrever. “O menino perguntou-me porque é que o pai tinha as calças para baixo. Não lhe posso dizer.”
Uma ilha de despojos
Termino esta história com a chegada à cidade do Porto. Esta mulher, de cerca de 30 anos, sozinha com a sua criança, começa a retirar da carruagem a bagagem.
Como o comboio seguia para Braga, muitas pessoas começaram a ajudá-la a levar os sacos para fora. Eram mais de 20 sacões. Formavam uma ilha de despojos. Mais o televisor.
E como, daí a pouco, partia o comboio de ligação que a haveria de levar à terra onde seria recebida pela família,
um grupo de pessoas prontificou-se para a ajudar, e cada um de nós pegou em 5 ou seis sacos, que colocámos em cima das nossas malas, e fomos escadas abaixo, escadas acima.
Recordo-me de ver uma outra mulher jovem, com a sua própria criança pequena ao colo, e mesmo assim ajudou a transportar vários sacos.
A mesma generosidade teve um sujeito que na viagem me prometera porrada por lhe ter pedido, de forma educada, que não invadisse o meu assento com as suas pernas esticadas.
Naquele momento, éramos um grupo de pessoas unidas para ajudar uma mulher sozinha, em fuga, com o seu filho.
A mulher agradecia repetidamente a Deus, mesmo tendo acabado de sair de um inferno.
E cada uma das pessoas deste grupo, uma a uma, despediu-se dos dois, mãe e filho, com um abraço, sem ar pelo meio, e desejos de boa sorte.
Isto aconteceu no dia a seguir ao Natal e ainda não me saiu da cabeça. O que será do futuro desta mulher e desta criança?
18 vítimas mortais em 2024
Em novembro do ano passado a violência doméstica tinha resultado em 18 vítimas mortais - 15 delas mulheres - de acordo com os dados oficiais divulgados pela Comissão Para a Cidadania e Igualdade de Género.
Segundo os Indicadores Estatísticos relativos aos crimes e homicídios voluntários cometidos em contexto de Violência Doméstica, respeitantes ao período de julho a setembro de 2024, foram acolhidas na Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica 1460 pessoas, sendo 51,1% mulheres, 47,5% crianças e 1,4% homens.
Este é um crime público que continua a envolver números abismais de agressões e femicídios. Mas a realidade que chega a tribunal é apenas a ponta de um monstruoso Iceberg, que deverá esconder num mar de silêncio um cenário ainda pior.
A pergunta da ministra da Justiça
A ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice, começou o seu discurso a abrir o ano judicial de 2025 com o caso de Alcinda Cruz, uma mulher de 46 anos que foi morta pelo marido, em sua casa, há cerca de uma semana, no Barreiro, à frente dos seus filhos menores, de 6 e 14 anos.
“Foi degolada e ferida na barriga a golpes de faca e de tesoura”, revelou a ministra.
“O que tem a Justiça a dizer a estes filhos, aos avós, aos tios, aos primos, aos amigos, aos professores dos filhos, aos vizinhos, a outras mulheres vítimas de violência doméstica, a todos nós que vimos as notícias?”, questionou ainda a ministra.
A queixa que Alcinda Cruz apresentou em 2022 foi arquivada no ano seguinte, revelou ainda Rita Alarcão Júdice. Um silêncio manchado pelo sangue de Alcinda, que acabou por ser assassinada, no Barreiro.
Esta pergunta da ministra merece uma resposta à altura do governo, dos tribunais, da polícia, de toda a sociedade.
É tempo destas denúncias serem levadas mais a sério e de se escrutinar um sistema que insiste em arquivar estes casos e deixar as vítimas à sua sorte.
Deve meter-se mais a colher
Entre agressor e vítima de violência doméstica é preciso meter mais a colher e garantir a segurança de quem pede ajuda. (Na sua esmagadora maioria mulheres e crianças).
Ao mesmo tempo que é fundamental julgar estes crimes e agressores com a mão forte necessária. Portugal não é ainda um país seguro para estas vítimas. Até quando?
Maioria das denúncias é arquivada
Basta dar conta que apenas 13% das denúncias de violência doméstica feitas em 2023 resultaram em condenações, um número que não tem sofrido grandes alterações nos últimos 10 anos.
Ou seja, a maioria dos alegados agressores mantém-se à solta. Como se explica isto?
Esperam-se mudanças. Urgentes. A pergunta da ministra precisa de uma resposta. Quantas mais Alcindas terão de morrer?
Peça ajuda e denuncie!
E não se esqueçam, a violência doméstica é crime público e denunciar é uma responsabilidade coletiva.
Se precisar de ajuda ou tiver conhecimento de alguma situação de violência doméstica, envie uma mensagem para a Linha SMS 3060 ou ligue 800 202 148. Esta linha é gratuita, funciona 7 dias por semana, 24 horas por dia.
A CIG tem ainda em funcionamento um serviço de correio eletrónico para colocar questões, pedidos de apoio e de suporte emocional: violencia@cig.gov.pt.
Pode também participar situações de violência doméstica à GNR, à PSP diretamente no Portal Queixa Eletrónica.
CONVERSEI EM PODCAST COM… RUI CARDOSO MARTINS
Enquanto mestre da crónica, Rui Cardoso Martins recebeu dois prémios Gazeta por “Levante-se o Réu”, pelos relatos do que se passa nos tribunais portugueses e o seu romance “Deixem Passar o Homem Invisível” foi distinguido pelo Grande Prémio de Literatura da APE, em 2009.
No ano passado publicou o seu 5º e último romance, “As melhoras da morte”, onde reflete sobre os contrastes do Alentejo, que canta as florinhas e os passarinhos e esconde debaixo do capote um lado mais sanguinário, solitário e triste.
Nesta conversa, Rui recorda os anos de repórter no jornal Público e conta a gota de água que o fez desistir do jornalismo e que envolve uma conferência de imprensa com Marques Mendes. O tal que depois foi transformado no boneco “Marques Pentes”, o “ganda nóia”, no programa de humor “Contra Informação”, na RTP, que Rui co-criou durante 14 anos.
NÃO DEIXEM DE VER… "JANGADAS DE PEDRA", NA SIC
Não percam a série documental “Jangadas da Pedra”, assinada pela jornalista Susana André, e que passa todas as quintas-feiras, no Jornal da Noite, da SIC. Um documentário que viaja “das montanhas da Sardenha às profundezas do Árctico” para mostrar os desafios e alegrias da vida nas ilhas mais remotas da Europa, “onde o isolamento é vivido de forma única”.
Que bom ver tão bom jornalismo que inspira e nos questiona a forma como estamos e vivemos. E o que deveria ser realmente o centro das nossas vidas. O segundo episódio, emitido na passada quinta-feira, conta a história de um casal que vive sozinho numa ilha do arquipélago das Faroé - Stóra Dímun, uma pequena jangada de pedra do Atlântico Norte.
Eva e Jógvan, vivem um amor que resiste ao isolamento de uma ilha sem mais ninguém e garantem que aquele pequeno lugar, povoado por cabras, não é sinónimo de solidão. E que bem podemos estar mais sozinhos numa grande cidade como Nova Iorque ou Lisboa…
Este casal, que tem os dois filhos a estudar na capital, dedica-se à agricultura e ao pastoreio e produz 90% do que consome. O helicóptero é a única ligação à ilha mais próxima e está dependente da meteorologia, num arquipélago onde chove 300 dias por ano.
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É tudo por agora. Temos encontro marcado aqui no próximo sábado. Bom fim de semana, boas escutas e boas leituras!
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