Bom dia,
Hoje vamos falar do direito ao aborto porque, mais uma vez, as barreiras que se põe a este direito foram notícia.
Há muita gente contra a interrupção voluntária da gravidez em Portugal. E isso seria ok, porque quem é contra o aborto, simplesmente que não o faça, não precisa de retirar esse direito a quem o quer. O problema é quando estamos a falar de médicos: apenas “cerca de 13% dos especialistas em Ginecologia-Obstetrícia, a exercer funções em entidades oficiais, realizavam IVG”. Ora, parece-me claro que um médico que seja contra não deva ser obrigado a fazê-lo, daí ter a possibilidade de ser objetor de consciência. Mas como garantimos que qualquer pessoa que queira uma IVG a possa ter?
É incrível como este direito, tão associado a mulheres, está constantemente a ser posto em cima da mesa de discussão. E porquê? A meu ver, é porque é a única coisa que não se pode controlar de fora, que o homem não pode meter o bedelho, é o útero da mulher (cis). No entanto, procura de todas as formas interferir, trazendo consigo machismo em todos os géneros e conservadorismo com raiz na religião. Claro que estes chamados “valores” passam de pessoa para pessoa, independentemente da sua profissão. Faz-me lembrar um dizer horrível, daqueles típicos que aparecem em azulejos e porcelanas de exposição: “Cá em casa manda ela e nela mando eu”.
Adianto desde já que está mais do que provado que o feto só sente dor a partir da vigésima semana de gestação, e em Portugal só é permitido o aborto por vontade própria até à décima semana.
Seremos tão conservadores ao ponto de não haver médicos nas proximidades que realizem IVGs? Mulheres que têm de ir dos Açores a Lisboa só para obterem uma IVG (notícia no passado dia 3), procedimento ao qual têm direito? A piorar a situação, a Entidade Reguladora da Saúde, como refere a notícia no passado dia 5, concluiu que “nos últimos dois anos a percentagem dos [profissionais de saúde] que fazem esta consulta [de IVG] tem vindo a diminuir em Portugal Continental”.
Acerca da possibilidade de as mulheres se verem obrigadas a efetuar longas distâncias para obter algo que é seu por direito, há dados assoberbantes já no período entre 2008 e 2013, no estudo de Miguel Areosa Feio:
“O SNS não garante o acesso equitativo a IG [interrupção da gravidez] nos seus serviços a todas as mulheres, dado que grande parte dos procedimentos são realizadas no setor privado e existem mulheres que são encaminhadas da sua região de residência para outras, nomeadamente em Lisboa, aspeto que pode influenciar a decisão de outras mulheres em aceder ao procedimento. (...) a verdade é que a indisponibilidade dos serviços tem um impacto importante na vida destas mulheres.“
Chegando à consulta, para que serve ouvir os batimentos cardíacos do feto? Honestamente, só serve para incutir culpa, culpa a qual tem raízes no referido conservadorismo português de raízes católicas. Quantos e quantos panfletos contra o direito ao aborto foram distribuídos à porta das igrejas? Eu vi-os, eu li-os.
Acerca da lei do aborto, da sua importância e de todas as suas camadas de preconceito social e médico, Carolina Monteiro, mestranda em medicina e pós-graduada em Sexualidade Humana, escreveu um artigo voraz e necessário em maio deste ano, onde, mais uma vez, se evidencia a inconstância deste direito ao aborto:
“Embora a lei ainda vigore, em 2015 ocorreu a única tentativa conhecida de alteração da sua formulação. Nesse ano, uma Iniciativa Legislativa de Cidadãos levou à implementação de algumas barreiras no acesso ao aborto por vontade da mulher: acabar com a isenção de taxas moderadoras, tornar o aconselhamento psicossocial obrigatório, obrigar a mulher a assinar uma ecografia, bem como permitir que os profissionais de saúde deixassem de ser obrigados a declarar a objeção de consciência, podendo participar nas consultas prévias da IVG. As leis que resultaram desta iniciativa foram revogadas em 2016, regressando-se à até hoje redação original da lei.”
Além disso, há uma ideia errada de que a maior parte das pessoas que procuram IVG fazem-no porque são jovens descuidadas (mais uma vez a culpa para cima da mulher, como se ela tivesse conseguido auto-fertilizar-se), mas a verdade é que o relatório de 2018 relativo às IVGs mostra que o grupo etário dos 15 aos 19 anos representa 9,28% das IVGs, próximo do grupo dos 40 aos 44 anos, com 8,24%.No dia 22 de maio deste ano, escrevi um artigo onde refiro os estereótipos associados a quem procura uma IVG, entre outras dimensões do aborto desejado.
Para haver possibilidade de engravidar, basta que duas pessoas férteis, uma com útero e outra com pénis, tenham relações sexuais. Mesmo com precauções contraceptivas, pode acontecer, e não sejamos ingénuos ao ponto de achar que pregar a abstinência dá bons resultados. Se o fizermos, das três algumas: ou acabamos com jovens com infeções sexualmente transmissíveis, porque não tiveram acesso à informação devida; ou resulta em pessoas que não vêem a relação sexual como um meio de prazer e comunicação; ou criamos uma associação emocional (e até física) nociva entre sexo e culpa.
A IVG deve ser um direito, uma opção, não uma proibição ou obrigatoriedade.
Quanto à falta de médicos e médicas para a realização de IVGs, não tenho respostas para o problema, mas tenho a pergunta: como poderemos garantir o acesso a IVGs em Portugal, sem barreiras geográficas e sem incutir culpa??
Se assim o desejar, pode-me enviar os seus comentários para clara@claranao.com.
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